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- Author, Juan Carlos Pérez Salazar Título
- Role, BBC News Brasil
- Twitter, @JCPerezSalazar
Mario Vargas Llosa, escritor peruano vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 2010, morreu neste domingo em Lima, aos 89 anos, segundo informaram seus filhos em um comunicado.
Vargas Llosa foi autor de obras marcantes da literatura latino-americana, como “A Festa do Bode”, “Conversa no Catedral” e “A Guerra do Fim do Mundo”.
“Sua partida entristecerá seus parentes, amigos e leitores, mas esperamos que encontrem consolo, como nós, no fato de que ele teve uma vida longa, múltipla e frutífera, e deixa para trás uma obra que o sobreviverá”, disseram no comunicado os filhos do escritor, Álvaro, Gonzalo e Morgana.
“Agiremos nas próximas horas e dias de acordo com suas instruções. Não haverá nenhuma cerimônia pública. Nossa mãe, nossos filhos e nós mesmos esperamos ter o espaço e a privacidade para nos despedirmos em família e na companhia de amigos próximos. Seus restos mortais, como era sua vontade, serão cremados”, acrescentaram.

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Obra prolífica
Vargas Llosa soube desde muito jovem que queria ser escritor.
E a isso dedicou sua vida com a disciplina de um operário, até alcançar o reconhecimento universal como autor — e também uma divisão de opiniões em torno de sua figura pública que não se via no Ocidente desde a época do filósofo Jean-Paul Sartre.
Talvez não seja totalmente coincidência: Sartre foi um de seus primeiros modelos (os colegas de juventude o chamavam de “o pequeno Sartre corajoso”) e, embora depois tenha criticado as ideias políticas do francês, até o fim foi um escritor engajado, comprometido com sua realidade, como pregava o famoso existencialista – Vargas Llosa chegou a ser candidato à presidência do Peru em 1990, mas perdeu para Alberto Fujimori.
Essa disciplina e compromisso o levaram a produzir uma obra de surpreendente abundância: 20 romances, um livro de contos, 10 peças de teatro, 14 livros de ensaio, dois de crônicas e um de memórias, além de múltiplas coletâneas de suas colunas e textos avulsos.
Jorge Mario Pedro Vargas Llosa nasceu em 28 de março de 1936, em Arequipa, no sul do Peru.
E embora sempre a tenha apontado como seu lugar de origem (e é lá que, na casa colonial onde nasceu, repousa sua biblioteca), viveu nela apenas um ano.
Em 1937, seu avô Pedro J. Llosa decidiu mudar-se para Cochabamba, na Bolívia, para administrar uma fazenda de algodão. Lá, cercado por mulheres e pela autoridade benigna do avô, Vargas Llosa viveu aquilo que ele próprio descreveu como uma espécie de paraíso.
A queda na realidade viria nove anos depois, quando a família materna retornou para viver no Peru, desta vez na cidade de Piura, onde seu avô foi nomeado prefeito.

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A figura paterna
O que aconteceu em Piura foi um dos eventos fundamentais de sua vida — tanto que é com ele que começa “Peixe na Água”, o mais próximo de uma autobiografia que Vargas Llosa chegou a escrever.
“Minha mãe me pegou pelo braço e me levou para a rua pela porta de serviço da prefeitura. Caminhamos em direção ao Malecón Eguiguren. Eram os últimos dias de 1946 ou os primeiros de 1947, pois já havíamos feito as provas no Salesiano, eu havia terminado a quinta série primária e já era verão em Piura, com sua luz branca e um calor sufocante.
— Você já sabe, é claro — disse minha mãe, sem que sua voz tremesse. — Não é verdade?
— Que seu pai não está morto. Não é verdade?
— Claro. Claro que sim.
Mas eu não sabia. Nem remotamente suspeitava.”
Ernesto Vargas, o homem que havia abandonado a mãe do futuro escritor poucos meses antes de seu nascimento, estava de volta para ocupar seu lugar patriarcal no centro da família.
E como ocupou: naquele mesmo dia, sem sequer avisar à família de sua esposa, Dora, levou todos para viver em Lima, capital peruana.
É possível que a pulsão de Mario, o escritor, tenha nascido ali — na luta descomunal e desigual de vontades que se iniciou entre aquele menino e seu pai tirânico.
Lima, detestável
Também em “Peixe na Água”, Vargas Llosa conta que detestou Lima desde o primeiro momento e se refugiou nas revistas em quadrinhos e nos romances de aventura de Júlio Verne, Emilio Salgari e Karl May.
Quando Mario tinha 14 anos, seu pai cumpriu a ameaça de colocá-lo num colégio militar, o Leoncio Prado. Lá, passaria quatro anos e, ao contrário do que seu pai desejava, enfrentaria um microcosmo do que era o Peru — com jovens de todas as classes sociais e raças do país — além da tremenda violência que emergia desses encontros. E foi isso que o convenceu de seu desejo mais íntimo: ser escritor.
Mas isso viria um pouco mais tarde. Antes haveria a experiência completa de Lima (com um breve intervalo em Piura para concluir o ensino médio, escrever sua primeira peça de teatro, A Fuga do Inca, e trabalhar na editoria policial de um jornal), cidade que já não lhe pareceria tão detestável.
Na capital, trabalhou em jornais e como assistente de um historiador, estudou Direito e Literatura na Universidade de San Marcos, foi brevemente membro do Partido Comunista (então proibido) no Peru e ganhou uma viagem de 15 dias a Paris pelo conto O Desafio, que integra seu único livro de contos, “Os Chefes”.
Foi nesse período que conheceu a obra de José Carlos Mariátegui, Karl Marx e Sartre — fundamentais para sua formação política inicial — e também a do norte-americano William Faulkner, que o marcou profundamente por sua técnica narrativa prodigiosa. Leu também com avidez Alexandre Dumas, Victor Hugo e Gustave Flaubert, outro de seus grandes mestres.
Foi também nessa época que, num ato de rebeldia tribal, casou-se, aos 19 anos, com sua tia materna, Julia Urquidi, 11 anos mais velha e divorciada.
Da relação com ela e de seu trabalho na Rádio Panamericana surgiria um de seus romances mais bem-sucedidos e divertidos: “A Tia Júlia e o Escrevinhador”. Da experiência em Lima durante a ditadura do general Manuel Odría viria a monumental Conversa no Catedral, e de Piura e duas estadias na Amazônia peruana, A Casa Verde.
Paris, Cuba
Em 1958, graças a uma bolsa de estudos, Vargas Llosa muda-se com Julia para Madri, onde pretende fazer um doutorado em literatura.
No entanto, permanece apenas um ano na Espanha e, ao término da bolsa, decide perseguir seu sonho de viver em Paris — um lugar mítico para escritores latino-americanos de sua geração (e das anteriores), como Julio Cortázar, Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes, Octavio Paz, Alejo Carpentier e Severo Sarduy.
As condições em que vivia com a esposa no Hotel Wetter no bairro latino eram extremamente modestas. Trabalhou como professor de espanhol e, inclusive — segundo relata Julia Urquidi em seu livro “Lo que Varguitas No Dijo” (O que Varguitas não disse, em tradução livre) — atuou como escritor fantasma para uma senhora peruana que queria publicar suas experiências no Oriente Médio.
Tudo mudaria com a publicação, em 1963, de “A Cidade e os Cachorros” (vencedor do Prêmio Biblioteca Breve da editora Seix Barral em 1962), que lhe traria fama internacional e repúdio local: centenas de exemplares do livro foram queimados pelos militares no colégio Leoncio Prado, por considerarem que a obra havia manchado a reputação da instituição.
Já mais bem estabelecido na França — embora com o casamento em crise — e trabalhando na rádio e televisão francesa, Vargas Llosa começou a escrever seu segundo romance, “A Casa Verde”, onde aparece pela segunda vez (a primeira havia sido em um conto) o sargento Lituma.
Foi nessa época que passou a apoiar plenamente a Revolução Cubana, para onde havia viajado algumas vezes como jornalista.
“Para a minha geração, e não só na América Latina, o que aconteceu em Cuba foi decisivo — um antes e um depois ideológico. Muitos, como eu, viram na gesta fidelista não apenas uma aventura heróica e generosa, de combatentes idealistas que queriam não só acabar com uma ditadura corrupta como a de Batista, mas também construir um socialismo não sectário, que permitisse a crítica, a diversidade e até a dissidência”, escreveria no prólogo de seu livro de ensaios O chamado da tribo.
Também foi o período em que estreitou laços com outros escritores latino-americanos que começavam a despontar, como Carlos Fuentes (Julio Cortázar ele já conhecia de antes — o argentino inclusive leu “A Cidade e os Cachorros” antes mesmo de sua publicação).
“A Casa Verde” — ambientado na selva amazônica e em um prostíbulo em Piura, e onde Vargas Llosa demonstra seu extraordinário domínio da técnica romanesca moderna — foi sua consagração definitiva. Publicado em 1966, venceu o Prêmio Rómulo Gallegos em 1967.
Em seu discurso de aceitação do prêmio, delineou o que seria seu credo literário:
“A vocação literária nasce do desacordo de um homem com o mundo, da intuição de deficiências, vazios e impurezas ao seu redor. A literatura é uma forma de insurreição permanente e ela não admite camisas de força.”
O mesmo poderiam ter dito vários colegas obcecados pela literatura que, paralelamente a Vargas Llosa, buscavam escrever romances totais — que não apenas complementassem a realidade, mas rivalizassem com ela.
Foi precisamente em agosto daquele ano, durante a entrega do Prêmio Rómulo Gallegos em Caracas, que Vargas Llosa e García Márquez se conheceram e iniciaram uma profunda amizade — que terminaria de forma explosiva em fevereiro de 1976, na Cidade do México.
Foi um personagem global até o fim do seus dias.
Em 2022, aos 86 anos, ocupou a cadeira número 18 da Academia Francesa de Letras. Tornou-se, assim, o primeiro escritor que não havia publicado sua obra em francês a ocupar um posto nos quase 400 anos da ilustre academia.
Em 2023, publicou o que anunciou ser seu último romance: “Te dedico mi silencio” (Dedico-te o meu silêncio). Também deixou de escrever sua coluna semanal, Piedra de Toque (Pedra de Toque), que manteve por décadas no jornal El País.
No momento de sua morte, Mario Vargas Llosa era o último representante de uma geração de gigantes que dominaram o cenário literário, intelectual e político da América Latina durante o século 20.

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Cinco obras imprescindíveis
– A Cidade e os Cachorros (1963)
– Conversa no Catedral (1969)
– Tia Julia e o Escrevinhador (1977)
– A Guerra do Fim do Mundo (1981)
Fonte.:BBC NEWS BRASIL