Primeiro pontífice jesuíta, latino-americano e oriundo da periferia do sistema eclesiástico romano, Francisco assumiu a liderança de uma instituição em crise, abalada por escândalos, estagnada institucionalmente e desafiada por um mundo cada vez mais secularizado e polarizado. Seu objetivo? Atualizar o funcionamento da Igreja Católica, reaproximá-la das pessoas comuns e torná-la mais sensível às dores do mundo contemporâneo.
O projeto de Francisco se desenvolveu em quatro grandes eixos: a reforma administrativa do Vaticano, a promoção da sinodalidade (uma espécie de democratização interna da igreja), a reinterpretação da moral sexual e familiar e uma nova atuação geopolítica do catolicismo no cenário global.
Na esfera institucional, seu primeiro passo foi enfrentar a má gestão e os casos de abusos sexuais. A nova “Constituição Apostólica Praedicate Evangelium”, promulgada em 2022, reorganizou a Cúria Romana, ampliou mecanismos de responsabilização e buscou dar mais transparência à máquina vaticana.
Mas talvez sua mudança mais profunda tenha sido no modo de conceber a própria igreja. Inspirado no princípio da sinodalidade, Francisco desafiou a estrutura piramidal tradicional, insistindo que todos os batizados —e não apenas o clero— compartilham a responsabilidade pela missão da igreja. Isso abriu espaço para escuta e participação de mulheres, leigos e grupos historicamente marginalizados.
Na moral, o pontífice não mudou doutrinas centrais, mas flexibilizou sua aplicação. Com a “Amoris Laetitia” (2016), admitiu que casais em segunda união poderiam comungar, após discernimento pastoral. Em 2023, com o documento “Fiducia Supplicans”, autorizou a bênção individual para casais do mesmo sexo —um gesto que provocou aplausos e críticas em igual medida.
No campo geopolítico, rompeu com o discurso centrado prioritariamente na bioética e se engajou em temas como desigualdade, ecologia, migração e paz. Suas encíclicas “Laudato Si’” (2015) e “Fratelli Tutti” (2020) propõe um modelo de fraternidade planetária.
Essas iniciativas provocaram reações contraditórias: setores ultraconservadores da igreja chegaram a questionar a legitimidade de seu pontificado. Já os setores progressistas ficaram frustrados com os limites de suas reformas. Mas por que, afinal, Francisco não foi mais longe? A resposta talvez esteja no seu próprio estilo: ele não foi um revolucionário, mas um reformador cauteloso. Buscou mudanças consistentes, mas sempre ancoradas nas diretrizes do Concílio Vaticano 2º e no respeito à tradição. Ao longo de mais de uma década, Francisco empurrou a igreja até os seus limites institucionais —mas sem rompê-los. Seu legado é ambivalente: abriu novas portas, mas também deixou muitos impasses em aberto.
A sucessão que se aproxima poderá tanto consolidar essas iniciativas quanto orientar ajustes em seu ritmo e alcance.
TENDÊNCIAS / DEBATES
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Fonte.:Folha de S.Paulo