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17 de junho de 2025

‘Descobri quem era aos 18’, diz sobrevivente do Holocausto – 17/06/2025 – Rede Social

‘Descobri quem era aos 18’, diz sobrevivente do Holocausto – 17/06/2025 – Rede Social

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“Descobri quem eu era aos 18 anos”, diz Antonieta Felmanas, aos 85, sobre o momento em que começou a montar o quebra-cabeças de uma sucessão de tragédias vividas na pele de uma criança que escapou do Holocausto.

Judia de origem ucraniana que chegou ao Brasil no pós-guerra, ela fez a descoberta ao esbarrar em uma anotação numa caderneta do marido: nascida em 1º de maio de 1940, filha de Hinde e Helschel Raichel. “Era a minha história”, conta ela, adotada aos 7 anos pelo casal de brasileiros Clara e Naum Felmanas, também de origem judaica.

Antonieta já tinha uma filha e estava grávida da segunda, quando o marido morreu de leucemia meses depois de ela confrontá-lo sobre a sua origem. Ficar viúva tão cedo era mais um dos dramas vividos pela jovem que, em 1944, foi resgatada por uma prima quando viva com um casal de camponeses na Polônia.

Foi assim que a menina nascida na Sibéria, para onde a mãe fora deportada grávida, sobreviveu à ocupação nazista.

A seguir, o relato de uma saga que parece filme e virou documentário dirigido pelo italiano Gianni Torres, que usou IA para dar vida às poucas fotos do álbum de uma família devastada pelo nazismo.

“Taibale, História de uma Criança Resgatada” fez sua estreia no Brasil em uma sessão especial no MIS, em 5 de junho. Primeira presidente da Unibes (União Brasileiro-Israelita do Bem-Estar Social) e cofundadora do Instituto Anchieta Grajaú, a protagonista foi aplaudida pela trajetória marcada também pela luta por dignidade para moradores de uma ocupação na zona sul de São Paulo. “Ninguém merece ser expulso do lugar onde mora.”

Taiba é o meu nome judaico. O le é diminutivo. Significa Pombinha. Eu devo ter sido Taibale até meus pais me entregarem para uma família cristã para me proteger durante a Segunda Guerra.

Recém-casados, meus pais viviam na região que hoje é a Ucrânia, quando minha mãe foi deportada para a Sibéria em 1939, com meses de gravidez. Nasci lá em 1º de maio de 1940, e recebi o nome russo de Maia.

Como meus avós tinham muito dinheiro, eles conseguiram trazê-la de volta. Pouco depois, meu avô paterno mandou desenterrar dois baldes de ouro para pagar uma família cristã para ficar comigo, quando começaram os rumores de que os nazistas estavam entrando naquela região e matando judeus.

Toda a minha família foi para o gueto, enquanto eu fui morar com um casal importante na cidade. Com medo de ficar comigo, eles me deram para outra família, desta vez de aldeões também cristãos. Nessa família, eu era chamada de Tosha, nome polonês.

Eu vivi ali até 1944, quando aparece a figura da Rivka [Bichonsky], prima do meu pai. Aos 16 anos, ela viu minha mãe indo com os pais dela e os meus avós para o gueto de Gluboke. Rivka e os três irmãos se esconderam na floresta, viraram partisans [grupo de resistência armada].

Em 1942, os alemães convocaram todos os jovens do gueto, prometendo emprego. Era uma armadilha. Meu pai e todos os outros que foram para a praça acabaram fuzilados ali mesmo.

Quando acabou a guerra, Rivka sabia onde eu estava. O casal de camponeses não quis me entregar, então eles me levaram à força. Minha única memória é de me jogarem um pano na cabeça e ir embora num trenó.

Aos 20, Rivka era casada com um partisan e já tinha um bebezinho. Nossa família tinha sido dizimada. A mãe dela foi queimada. O pai dela, meus avós e minha mãe morreram fuzilados em 1943. Os soldados mandavam fazer covas e atiravam.

No fim da guerra, fomos em busca de familiares do marido da Rivka, mas não havia sobrado ninguém. Eles resolveram ir embora, mas para fugir da Rússia naquela época da Cortina de Ferro andávamos à noite, viajávamos em trem de carga.

Levou tempo até chegarmos ao campo de refugiados em Milão em 1946. Lá havia uma entidade judaica que buscava contato com familiares nos Estados Unidos, na América Latina. Eles localizaram a família Felmanas, cuja matriarca era irmã da minha avó biológica.

Rivka recebeu uma carta dela dizendo que o seu filho Naum e a nora, Clara, tinham perdido um garoto de 13 anos. Ela tinha certeza de que uma menina como eu iria salvar o casal. Um amigo do meu pai foi me buscar. Ele conhecia o cônsul polonês, que conseguiu um passaporte para mim.

Em dezembro de 1947, eu cheguei ao Brasil. A história contada era que meus pais haviam me deixado na Europa porque não dava para fugir com uma criança no meio da guerra. Era convincente. Tenho flashes de memória da infância, mas só descobri que era adotada aos 18. Aos 19, eu já era viúva com duas filhas.

Em 1962, meu pai, que era dono de uma metalúrgica, me convidou para uma viagem de negócio à Europa. No final, ele me ofereceu um presente por tê-lo ajudado. Eu disse que gostaria de visitar Rivka em Israel.

Rivka morava em Tel Aviv. No aeroporto não tinha ninguém nos esperando, pois o cartão postal que eu havia mandado levou uma semana para chegar.

Pegamos um táxi. Ficamos mais de meia hora rodando no bairro dos professores, até que vejo no fim da rua uma mulher andando com um vidro de leite. Saí correndo e quando cheguei perto a gente se abraçou. Não precisou falar nada.

Meu pai foi embora e eu fiquei mais uns quatro dias. E sempre perguntando: ‘Quem sou eu?’. Rivka chorava e dizia que não ia conseguir falar: ‘No dia que você for feliz de novo, vem pra cá que eu conto quem é você’.

Eu estava triste pela perda do meu marido, mas aceitando a vida como ela era. Na minha casa, o choro era no banheiro, com toalha no rosto para não fazer barulho.

Em 1964, eu me casei com Nestor Bergamo, e fomos de lua de mel para a Europa. Ele queria me dar um presente. Eu pedi para rever a Rivka. Estava feliz de novo. Fui para Israel e dessa vez ela começou a contar minha história, mas chorava toda vez que lembrava de toda a família morta, dos anos que passou na floresta, com frio, fome, vendo crianças morrerem.

Depois disso, ela veio ao Brasil duas vezes. De vez em quando, eu voltava a Israel. Numa dessas idas, ela já não estava bem de saúde. Foi quando me perguntou se eu tinha um gravador. ‘Vamos gravar a tua história’, me disse. Só então contou tudo desde o começo.

Ela tinha uma foto do meu avô no gueto, trabalhando numa fábrica de cordas, e uma 3 x 4 da minha mãe. Achei que era uma foto minha. Éramos muito parecidas. Levava na bolsa como meu porta sorte, mas fui roubada em Miami.

Quando era mais moça e contava minha história, eu me sentia a própria heroína. Ao ver o filme, eu realmente entendi quantas tragédias vivi.

Quem é Antonieta? Alguém que sempre teve empatia pelas pessoas e amor no coração. Alguém que acha que com bondade se vai em frente. Entendendo as coisas como elas são. Aceitá-las, muitas vezes, com tristeza, mas o que fazer?

Eu não olho para o meu umbigo. Foi emocionante saber que minha história tocou as pessoas. Gostei do documentário por fazer um paralelo entre o que aconteceu comigo na infância, e quando, adulta, eu lutei para que 1.500 famílias não tivessem que deixar um terreno invadido que pertence ao Instituto Anchieta Grajaú.

Em 1997, começamos como voluntários este projeto social na zona sul de São Paulo para atender crianças no contraturno, para que elas não ficassem na rua.

Eu trabalhei muitos anos na Europa, mas ao conhecer o Eduardo [Alves da Costa, escritor], meu terceiro marido, eu resolvi voltar em definitivo para o Brasil. Montei em São Paulo um escritório de eventos e assessoria na área cultural.

Fui contratada pela Federação Israelita para organizar os eventos dos 500 anos da expulsão dos judeus da Península Ibérica. Conheci o arquiteto Roberto Loeb, com quem Eduardo e eu cofundamos o projeto Anchieta.

Quando houve a ocupação do terreno do instituto, que foi doado pelo Elie Horn [dono da Cyrela], eu e Eduardo fomos até a diretoria convencer a todos a não pedir a reintegração de posse.

Os nazistas nos enxotaram da Europa, mas nós não poderíamos deixar ninguém dali ir embora. São pessoas que estavam na rua e que hoje deitam e sabem que ninguém vai tirá-los de lá.

Sou sionista e defendo a existência de dois estados, o de Israel e o palestino. Uma posição defendida pela maioria dos judeus no mundo todo e em Israel. Ninguém merece ser expulso do lugar onde mora.



Fonte.:Folha de S.Paulo

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