A comida mais gostosa do mundo é a da minha mãe.
E, para ser sincera, nem importa o menu: pode ser um frango assado, uma saladinha básica ou um salmão mais sofisticado. Tudo que tem o tempero dela é único.
Apesar do romantismo, essa está longe de ser uma experiência única e intransferível: todo mundo tem alguém na família que prepara refeições deliciosas. Pratos que, tantas vezes, nos levam a lugares a que nenhum chef consegue.
Mas essa mágica, ou melhor, habilidade, tem sido perdida pelas novas gerações. E isso pode ser um problema não restrito à mesa.

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Cozinhar nos tornou humanos
Não é exagero dizer que cozinhar nos tornou humanos. Características anatômicas da nossa mandíbula e do crânio indicam aos cientistas que a evolução do Homo erectus (o primeiro primata a descer das árvores e andar sobre duas pernas por longas distâncias) para o Homo sapiens (nossa espécie) está ligada a uma mudança na dieta e ao uso do fogo para cozinhar alimentos.
Afinal, quebrar as fibras de vegetais, peixes e carnes deixa-os mais fáceis de digerir e amplia seu fornecimento de nutrientes, o que teria propiciado um crescimento do corpo e do cérebro de forma mais eficiente do que ingerindo alimentos crus.
Além disso, a passagem pelas chamas também faz com que a comida fique mais segura para o consumo, eliminando micróbios.
Segundo Richard Wrangham, professor de antropologia evolutiva da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, essa inovação culinária pode explicar desde a organização nuclear das famílias humanas até traços distintivos da nossa anatomia, como o aparelho digestivo mais enxuto e o tamanho mais próximo entre homens e mulheres.
Um estudo publicado na revista científica Nature Ecology and Evolution sugere que hominídeos já cozinhavam alimentos há pelo menos 780 mil anos.
“E, para além da necessidade fisiológica, cozinhar é um ato social, que perpassa diversas cadeias até a escolha e a cocção dos alimentos”, afirma a nutricionista Betzabeth Slater, responsável pelo Laboratório Cozinha Didática da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).
“Preparar sua comida é um ato também político e implica questões de direitos humanos, segurança alimentar e nutricional, entre outros.”
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No futuro, ninguém mais vai cozinhar?
Mas esse hábito milenar, que ajudou a moldar quem somos hoje, passa por uma crise. Cada vez menos costumes, receitas e temperos vão sendo transmitidos de geração em geração e a própria relevância concedida a esse momento vem perdendo espaço.
A ponto de o dono de uma famosa empresa de delivery ter afirmado que, no prazo de dez anos, ninguém mais iria cozinhar — como se as refeições fornecidas pelos aplicativos não fossem preparadas por gente!
A profecia tem chances baixíssimas de se concretizar. Mas é sintomática: o que antes era uma necessidade e tradição caseira tem sido deixado de lado — e no mundo todo.
É o que os especialistas chamam de transição culinária. “Nesse movimento, as pessoas estão ressignificando o que é e como se cozinha, os materiais empregados e até os ingredientes que serão usados”, explica a nutricionista Carla Martins, professora do Programa de Alimentação Coletiva do Instituto de Alimentação e Nutrição da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em Macaé.

Um grande relatório mediu a mudança desse comportamento pelo globo entre 2018 e 2022. O World Cooking Index, organizado pela Cookpad, empresa japonesa de culinária, descobriu que, embora o número de refeições preparadas em casa tenha crescido na pandemia, logo na sequência os índices desabaram, retomando a tendência de botar a mão na massa cada vez menos.
De acordo com o documento, o país que mais cozinha é El Salvador, que prepara cerca de nove das 14 refeições principais semanais no ambiente doméstico, seguido de França, Venezuela, Irlanda e Laos, todos na faixa de mais ou menos oito refeições.
O Brasil é o 47º no ranking (que inclui 143 nações): preparamos entre seis e sete almoços ou jantares. “Nosso país está numa posição intermediária, o que faz sentido com esse crescimento do delivery que estamos vendo”, interpreta Martins.
Mas qual é o problema de não cozinhar?
Vários, entre eles perder o controle da própria alimentação.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), comer mal está entre as principais ameaças atuais para a humanidade, resultando em uma série de doenças crônicas — de obesidade a câncer.
Reaver nossos dotes e rituais culinários é, portanto, uma questão de saúde!

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Você já parou para pensar em tudo que se perde quando não se sabe preparar a própria refeição?
De fato, fazer isso do zero nem sempre é fácil, mas, acredite, é uma das melhores receitas para promover a saúde.
“Diabetes e hipertensão são doenças crônicas totalmente ligadas à alimentação. Por isso, entender a importância da prática culinária na prevenção e controle dessas condições é essencial”, afirma a médica Thais Mauad, uma das responsáveis pela disciplina de medicina culinária na Faculdade de Medicina da USP.
É inegável: consumir rotineiramente pratos que você não sabe como foram feitos aumenta as chances de ter uma dieta desbalanceada.
A professora Slater exemplifica que, quando você faz um bolo de chocolate, sabe as quantidades de açúcar, gordura e farinha que colocou. Assim, tendo consciência de que é algo hipercalórico, come de forma controlada.
“Agora, quando você não sabe o que tem dentro, só vê o alimento pronto, a chance de passar do ponto, mesmo sem querer, é muito maior”, afirma.
A cozinha no consultório médico
Em um cenário de maior conscientização a respeito, a disciplina conduzida por Mauad objetiva aproximar os princípios e técnicas do preparo de alimentos da prática médica.
“Um profissional que sabe cozinhar aconselha melhor seus pacientes”, defende.
“Um aluno me contou uma vez que, ao recomendar a uma pessoa com pressão alta que reduzisse o sal, ela perguntou como fazer isso sem deixar a comida sem gosto, e ele, um estudante de medicina, não soube responder”, relata a professora.
“Aqui na disciplina a gente ensina como acrescentar ervas naturais, como preparar comidas gostosas totalmente sem sal, como adequar a alimentação às diferenças culturais e socioeconômicas do paciente, tudo que influencia um bom tratamento”, descreve Mauad.
A filosofia é esta: saber fazer boas escolhas e colocá-las em prática é a chave para construir uma autonomia alimentar e cuidar da saúde.
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Como usar a culinária a seu favor
Nesse contexto, é preciso entender como usar a cozinha a seu favor, já que até o ato de preparar as refeições vem sofrendo mudanças ao longo do tempo.
Martins explica que hoje temos três formas de preparo de alimentos: a culinária do zero, recomendada pelo Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde; a culinária de conveniência; e a culinária mista.
A primeira utiliza majoritariamente alimentos in natura ou minimamente processados e é a mais saudável de todas, mas também a mais trabalhosa. Ela exige tempo, planejamento e habilidades.
O Guia expõe que é preciso selecionar, pré-preparar, temperar, cozer, combinar e finalizar a comida para servir. Mas, calma, não é tão difícil quanto parece.
“Às vezes as pessoas já ficam com receio, julgando que não vão conseguir, mas você não precisa cozinhar um banquete todo dia. Existem ferramentas e facilitadores para otimizar o processo, garantindo uma comida gostosa e nutritiva”, acalma a nutricionista Caroline Capitani, coordenadora do projeto Menu (Medicina Culinária e Nutrição na Atenção à Saúde) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

A cozinha de conveniência prioriza 100% a praticidade, mas compromete a qualidade das refeições: preparar um macarrão instantâneo com molho de tomate pronto, colocar uma lasanha congelada no micro-ondas ou fazer bolos e salgados com misturas de massas industrializadas entram nessa categoria.
“É uma forma de cozinhar, mas, como utiliza alimentos ultraprocessados como base, não é saudável”, pontua Martins.
Já a cozinha mista, segundo a professora da UFRJ, é bem comum no dia a dia do Brasil: num prato feito com arroz, feijão, carne e saladinha, a base do preparo foram alimentos naturais, mas utilizaram-se temperos prontos e optou-se por um molho ultraprocessado para intensificar o sabor suave da salada, por exemplo.
“Uma das principais questões problemáticas é a homogeneização de sabores, que compromete a cultura alimentar de diferentes regiões e nos leva a perder temperos típicos, artesanais e únicos das famílias”, explica a também pesquisadora ligada ao Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da USP.
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Aliás, não conseguir reproduzir e propagar a própria cultura através do preparo de pratos típicos é outro prejuízo de não saber cozinhar. “Os jovens cada vez menos convivem com a produção de alimentos no ambiente doméstico, e isso enfraquece todo o aspecto afetivo”, aponta a nutricionista Ana Carolina Vasquez, também do Menu.
O valor de cozinhar em família
A professora da Unicamp enfatiza que o preparo das refeições é também um ambiente valioso de convívio familiar, conexão e troca. “Não é apenas o ato de cozinhar, é pensar nas pessoas que estarão à mesa, adequar os temperos, compartilhar conhecimentos e fortalecer as relações entre a família”, expõe Vasquez.
Nesse sentido, diversosestudosapontam que as habilidades culinárias dos pais estão diretamente relacionadas à qualidade da alimentação dos filhos, e que, quanto mais eles manjam de cozinha, menos ultraprocessados os pequenos ingerem.
Uma pesquisa recente da USP avaliou também o envolvimento de adolescentes brasileiros na culinária caseira, e constatou que 61% não participavam habitualmente do planejamento das refeições, enquanto 67% ficavam de fora da escolha ou compra de alimentos e ingredientes culinários, o que contribui para o desinteresse deles por cozinha na vida adulta.
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Cozinha não é lugar de mulher
Apesar da importância incontestável desse hábito, a culinária doméstica (assim como outros afazeres do lar) tem sido historicamente negligenciada, considerada um trabalho exclusivamente feminino, menor e mais fácil que os feitos fora de casa.
Slater afirma que, atualmente, diversas mudanças da modernidade contribuíram ainda mais para nos afastar da comida: o domínio da indústria de alimentos, os espaços arquitetônicos das casas (e das cozinhas) cada dia mais reduzidos e até mesmo o papel da mulher como força produtiva dentro da economia.
O relatório do Cookpad também elenca essas questões, e o estigma de gênero é gritante, já que o principal fator que afasta as pessoas da cozinha é ser homem — pelo mundo, eles cozinham no máximo quatro refeições por semana, enquanto elas preparam uma média de oito.
“A maioria das mulheres trabalha fora e ainda é responsável pela alimentação de toda a família. Existe um problema estrutural, e, mesmo o homem fazendo churrasco no sábado, estamos a anos-luz de chegar a uma equalização das tarefas”, observa Martins.
Além disso, fatores como trabalhar em tempo integral, morar com várias pessoas, ser solteiro e ter entre 15 e 24 anos também foram relacionados pela pesquisa internacional a menores taxas de mão na massa na cozinha.
Mas transmitir a prática culinária não é um trabalho exclusivo da família: políticas públicas e maior expansão do tema nas escolas também são medidas fundamentais.
O Núcleo de Pesquisa e Extensão de Estudos em Ciência, Cultura e Comida (ECCCO) da Faculdade de Saúde Pública da USP, por exemplo, capacita professores da rede pública para ensinarem esses conhecimentos às crianças, iniciativa que pode e deve ser replicada pelo país.
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Como começar a cozinhar mais
Bom, já ficou claro que, se você não cozinha, é preciso tentar mudar isso para ontem, certo?
E aqui vão orientações práticas e factíveis para transformar a vontade em realidade.
Primeiro: mude seu mindset. Parece papo de coach, mas o importante é você tirar da mente que planejar sua alimentação e cozinhar é perda de tempo.
“Você está promovendo sua saúde quando cozinha, não desperdiçando tempo”, reforça Slater. Melhor priorizar a alimentação do que precisar ir a médicos por doenças evitáveis depois, não?
Segundo: se você não mora sozinho, divida a responsabilidade do preparo das refeições. Para além da superação de estereótipos machistas, o compartilhamento de funções é crucial para reduzir o tempo de preparo.
Terceiro: identifique as principais barreiras e facilitadores para o preparo de refeições em casa.
Uma pequena pesquisa feita na Irlanda esmiuçou esses pontos em um grupo de voluntários, e os principais obstáculos para cozinhar do zero apontados foram:
1) pressão do tempo;
2) economia de dinheiro;
3) desejo por refeições que não exigem esforço;
4) preferências alimentares da família;
5) consequência de desastres na cozinha.
“Medo de errar, receio de desperdiçar alimentos ou mesmo temer um acidente com algum utensílio, como a panela de pressão, afastam as pessoas da cozinha. Mas a prática é a base para a boa culinária! Ninguém nasce sabendo”, afirma Martins.
Na elencagem dessas supostas barreiras, pense nos eletrodomésticos que você tem, se seu freezer comporta alimentos congelados e o que é possível ser adquirido dentro da sua realidade.
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O estudo irlandês apontou os seguintes facilitadores:
1) desejo de comer pela saúde e bem-estar;
2) inspiração criativa;
3) capacidade de planejar e preparar refeições com antecedência;
4) confiança na própria habilidade culinária.
Ter uma air fryer e assistir a vídeos de receitas já dão uma baita ajuda!
Quarta dica: organize-se. Reserve um dia para pensar no cardápio da semana, calcular quantidades, ir comprar e selecionar bons ingredientes, além de deixar tudo pré-pronto (cortado, descascado, porcionado…) para a hora de ir ao fogão.
Quinta: invista em desenvolver suas habilidades culinárias!
É sério: aprendendo algumas técnicas, é possível cozinhar refeições completas gastando de 30 a 60 minutos. O mesmo tempo que o delivery demora para chegar com uma refeição que você nem sabe como foi feita.
Cozinhar é assumir as rédeas da sua vida e da sua saúde. Façamos por nós! Vamos juntos?
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Fonte.:Saúde Abril