Moisés, o personagem bíblico, grava um vídeo com a câmera de selfie dentro do palácio de Ramsés, faraó do Egito. Assim como a gravação digital, a linguagem moderna destoa do século 13 a.C. quando viveu o profeta do judaísmo e do cristianismo.
“Faraó, se você está vendo isso daqui, é a última chance: deixa o povo ir ou vai chover granizo, gafanhoto ou o que for”, diz Moisés. Depois emenda: “Hashtag libera meu povo”.
O vídeo usa o popular formato do TikTok conhecido como “POV” (sigla em inglês para ponto de vista), no qual o autor faz um relato pessoal, para contar histórias consagradas do Antigo Testamento, na receita que, em um mês, deu fama ao editor de vídeos Klelvem Barcelos, 30.
Ele é o criador do Vlog Bíblico, página criada em 28 de maio que tem quase 46 milhões de visualizações no TikTok e mais de 8 milhões no Instagram. Seguido por 365 mil pessoas, o brasileiro está na crista de uma onda internacional, em que contas americanas tiveram projeção semelhante usando a plataforma de IA do Google Veo 3 para gerar vídeos ultrarrealistas de histórias do cânone cristão.
O TikTok paga cerca de US$ 0,15 por 1.000 visualizações para os influenciadores que passam dos 10 mil seguidores. A projeção também já trouxe acordos de publicidade para Barcelos, além de clientes que encomendaram outros vídeos feitos com IA.
O sucesso do Vlog Bíblico foi tamanho que impulsionou a criação de outros perfis similares, sob nomes como “Anima Bíblia” e “Biblia Filmada”, já com milhares de seguidores. Os donos desses perfis oferecem cursos online sobre criação de vídeos com IA. Incluso na tendência, Barcelos já prepara uma mentoria, que deve anunciar nos próximos dias.
De acordo com ele —que hoje não tem religião, mas é de família evangélica—, a ideia de fazer um vlog de histórias bíblicas é antiga. “Eu já tinha um canal bíblico no YouTube, só que era um canal bem pequeno, com menos de 100 inscritos.”
Ele conheceu, quando era criança, as histórias [do Antigo Testamento] e, desde então, as considera envolventes —”podiam gerar uma identificação com o público”, afirmou.
Porém, ele escolheu adotar um tom mais ameno nos seus roteiros. “São histórias pesadas, de pessoas que passaram por situações bem difíceis, de uma forma que poderia gerar um desconforto.”
Folha Mercado
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O lançamento da plataforma de vídeos do Google, também em 28 de maio, permitiu que Barcelos elevasse a qualidade dos vídeos a um custo acessível. A ferramenta foi gratuita durante um período de testes —logo, o teste do produto saiu de graça.
Depois, o criador do Vlog Bíblico teve que assinar um plano do Google por R$ 609 mensais (durante os primeiros três meses; o valor depois sobe para R$ 1.200), que dá direito a 1.250 créditos. A plataforma cobra 20 créditos para gerar vídeos de qualidade inferior e 100, para peças mais complexas. Quando precisa de cenas mais elaboradas, com vários personagens e detalhes, Barcelos precisa desembolsar mais.
A produção de cada esquete envolve a geração de vários vídeos, como se fosse uma gravação de filme, em que cada cena exige várias tomadas. “Dependendo da complexidade do vídeo, é preciso descartar muita coisa, porque nem sempre a imagem vai ser criada como se almejava.”
A experiência dele na edição de vídeo por cinco anos também o ajuda na hora de dar instruções precisas para a inteligência artificial sobre ângulos, luz e composição. No fim, ele ainda monta o produto final em um editor de vídeo clássico, como o Adobe Premiere, para adicionar detalhes como um som ambiente natural, que a IA não consegue gerar.
Segundo a pesquisadora do Iser (Instituto de Estudos da Religião) Magali Cunha, o sucesso dos vídeos bíblicos é esperado em um país com tamanha adesão ao cristianismo como o Brasil —isso ainda se soma ao estímulo do novo formato dos vídeos gerados por IA. “Há uma curiosidade sobre como essas histórias e os personagens tão conhecidos ganham vida tanto nos vídeos com imagens artificiais quanto nos espaços nas mídias sociais.”
Além disso, diz Cunha, existe uma expectativa, em especial no contexto de evangélicos, que assumem uma visão missionária da fé, de que a ocupação das mídias com todo tipo de recurso contribui com a propagação da mensagem de Deus. “Com isso, dar audiência a esses produtos é fazer com que ele chegue a mais pessoas.”
No geral, afirma Cunha, as publicações humorísticas são bem aceitas e têm audiência garantida, mas há fiéis e lideranças que criticam as obras, por considerarem uma prática um desrespeito à fé ou um pecado. “Brincar com coisas de Deus seria uma ofensa a Deus na visão dos críticos”, afirma.
Por outro lado, diz a pesquisadora, as plataformas de IA, por serem baseadas em dados disponíveis na internet, tendem a reforçar os estereótipos da cultura ocidental sobre as histórias bíblicas, em alinhamento com interpretações mais conservadoras da religião.
“Basta retomar as produções clássicas em pinturas, filmes, ilustrações, e mais recentemente as novelas: temos não só anjos representados a partir de concepções gregas e não hebraicas, mas Jesus e outros personagens todos embranquecidos, europeizados”, afirma.
Ainda de acordo com ela, o uso da tecnologia ainda não foi adotado pelas maiores igrejas e lideranças cristãs no país. “Mas, se considerarmos o extenso número de lideranças de pequenas e médias igrejas e a intensa interação que elas têm com o digital na perspectiva missionária, é bem provável que muitas estejam propagando imagens feitas por IA.”
De acordo com a professora da Faap (Fundação Armando Álvares Penteado) e pesquisadora de desinformação da Agência Lupa Beatriz Farrugia, uma preocupação é que conteúdos de paródia, incluindo os religiosos, sejam usados para confundir o público.
A sátira, diz ela, está sob o guarda-chuva dos chamados “conteúdos fabricados”, que, apesar de falsos, nem sempre são feitos para manipular alguém. “Como pesquisadores, nós sabemos que esse não é um gênero nativamente desinformativo. É um gênero narrativo apenas, só que tem muito potencial para desinformar.”
Segundo Farrugia, os conteúdos criados por IA geram um novo desafio para os checadores de fatos e pesquisadores de desinformação porque ainda não há uma ferramenta que identifique se um vídeo é sintético com 100% de precisão. “Antigamente, a gente conferia os detalhes ou distorções, mas a tecnologia vai evoluindo e os vídeos vão ficando cada vez mais ultrarrealistas.”
“Hoje em dia já não é tão fácil reconhecer que foi feito com IA só a partir desses sinais”, como movimentos antinaturais ou dedos sobrando, diz a especialista.
Fonte.:Folha de S.Paulo