Para aproveitar o Festival Folclórico de Parintins, no Amazonas, vale conhecer as regras básicas. Se o seu assento no Bumbódromo ficar do lado reservado aos torcedores do boi Caprichoso, evite usar roupa vermelha, a cor da agremiação do boi Garantido. E vice-versa, claro: se está indo para a arquibancada do Garantido, não use azul. Aliás, o nome do rival nem é dito. O adversário é chamado apenas de “o contrário”. E, um alerta: não adianta tentar escolher um boi para torcer, porque “é o boi que escolhe você”, vão te explicar.
É tudo brincadeira, mas é brincadeira séria. Presente na cultura regional desde o início do século 20, o tradicional boi-bumbá ganha dimensão apoteótica em Parintins, onde as duas agremiações folclóricas – Caprichoso (o boi preto com a estrela azul) e Garantido (o boi branco com o coração vermelho) – duelam todo final do mês de junho em uma arena com capacidade para mais de 20 mil espectadores, o Centro Cultural e Desportivo Amazonino Mendes, o Bumbódromo, inaugurado em 1988.
No centro da arena, os grupos fazem o que a organização do festival define como o “maior espetáculo do povo da floresta”. O boi é o centro da festa, mas as coloridas alegorias e os artistas que entram no Bumbódromo falam das lendas amazônicas, da defesa da natureza, e, principalmente, das lutas dos povos indígenas, exaltados no folguedo.
Segundo lembra o professor Deilson do Carmo Trindade, em seu livro sobre os trabalhadores dos galpões de alegorias dos dois bois-bumbás, a etnia dos Parintintin é um grupo indígena da região lembrado no imaginário local como “um povo guerreiro, que não se torna submisso ao inimigo, mas luta bravamente”. “É dessa memória que o parintinense nutre sua autoestima, que lampeja no festival, pondo em evidência o Estado, a cidade, o povo”, introduz o pesquisador.
O festival, que neste ano chegou para sua 58ª edição, tem três noites de espetáculo na arena, sempre ao som das toadas (temas cantados que servem de enredo à apresentação) e da percussão, que é a batucada (Garantido) ou a marujada (Caprichoso). Uma noite de espetáculo dura de 4 a 5 horas, porque os bois tomam conta da arena separadamente – e cada um se apresenta no mínimo por duas horas e no máximo por duas horas e meia.
Durante o espetáculo, a participação do torcedor que fica em uma arquibancada específica do Bumbódromo, a chamada “Galera”, vale nota na competição, que tem um total de “21 itens” a serem observados pelos jurados. A Galera é o “item 19” e faz do festival um espetáculo único.
Ao longo de todo a apresentação, a Galera se mantém engajada, pulando e cantando emocionada, enquanto segue com perfeição os movimentos indicados pelo animador logo à frente. O descanso só vem quando “o contrário” se apresenta. Quando o boi Garantido entra na arena, a Galera do Caprichoso fica quieta, e vice-versa.
Mas não é fácil conseguir assento na área específica da Galera, onde não há cobrança de ingresso. Neste ano, a fila para garantir vaga na apresentação de 28 de junho começou a se formar ainda na noite de abertura do festival, em 27 de junho.
Nesta edição, no item Galera, os dois bois empataram com notas máximas, mas quem levou a competição após a avaliação de todos os 21 itens foi o boi Garantido, para indignação “do contrário” – a direção do Caprichoso se retirou da sala no meio da apuração, protestando contra jurados. A diferença entre eles foi de apenas 1,1 ponto.
O governo do Amazonas, principal organizador do festival que também tem patrocinadores privados, estima que a edição de 2025 tenha atraído mais de 100 mil pessoas à cidade –e a expectativa é movimentar perto de R$ 185 milhões na economia local.
O número de visitantes é quase a mesma quantidade de habitantes do município, 96.372 pessoas, segundo o Censo de 2022 do IBGE. A maioria deles é da própria região, principalmente da capital amazonense, Manaus, onde a rivalidade entre Caprichoso e Garantido também faz parte da cultura local.
“Já fui mais de 30 vezes para lá. Vou quase todos os anos, mesmo na época que eu morava no Rio de Janeiro. É a melhor festa do Brasil hoje em dia. É uma coisa regional que em parte nenhuma do mundo existe”, conta o funcionário público Almir Biase Martins, 62, morador de Manaus e torcedor do Garantido.
“Nosso boi é do povão. O contrário é elitizado. Mas um não pode viver sem o outro. Se não fossem os dois, não existia o festival”, diz ele.
O trajeto entre Manaus e Parintins leva quase 1 hora de avião. Uma alternativa mais barata de transporte é o barco, e aí o trajeto leva mais tempo. Dependendo do tipo da embarcação, a viagem pode durar 8 horas ou até 20 horas.
Localizada em uma das ilhas do arquipélago de Tupinambarana, Parintins é uma cidade amazonense colada na divisa com o Pará, distante 475 km de Manaus por via fluvial.
onde fica
Alguns barcos também servem de hospedagem em Parintins, no porto, compensando a rede hoteleira miúda. O mais comum entre os visitantes, contudo, é ficar nas casas de parintinenses que alugam pelo período do festival.
Almir e a esposa foram acolhidos na casa de um amigo e não tiveram gastos com hospedagem. Mas a despesa da viagem toda saiu por cerca de R$ 6.000, incluindo passagens aéreas e os ingressos para uma noite no Bumbódromo. “É uma festa cara, mas vale a pena”, diz Almir.
Os preços na arena variam a depender do local escolhido para assistir à apresentação e da quantidade de espetáculos: um ingresso avulso, apenas para uma noite (de R$ 550 a R$1.920), ou o passaporte completo, para as três noites (de R$1.440 a R$4.800).
No dia da abertura do festival, em 27 de junho, e com todos os bilhetes já vendidos, não era difícil encontrar gente oferecendo ingresso logo na entrada principal do Bumbódromo, mas o preço “depende do bolso do cliente”, disse uma vendedora à reportagem. “Querem me vender por R$ 2.000 com boi já dentro”, reclamou outra mulher que ainda tentava adquirir o ingresso mesmo com o Garantido já se exibindo na arena.
Embora a apoteose aconteça dentro do Bumbódromo, o festival toma conta da cidade. Nas vias próximas à arena, com trechos interditados por causa dos espetáculos, moradores e comerciantes vão para as calçadas com cadeiras e televisores nos momentos das apresentações.
“As pessoas às vezes desistem de entrar no Bumbódromo porque essa fila [para a área da Galera, onde há gratuidade] é uma dificuldade, mas eu estou acostumado com a festa e deixo para as pessoas de fora, que ainda não conhecem”, diz o eletricista Luzivaldo Barroso Bruce, 47, sentado em uma das mesinhas da calçada e de olho na televisão. A transmissão de todas as apresentações é feita ao vivo por uma emissora amazonense, a TV A Crítica.
Bruce é torcedor do Garantido, mas revela que já se apresentou no Bumbódromo como integrante do Caprichoso. “Meu pai trabalhava no boi contrário. E aí, eu, torcedor do Garantido, fui lá. Mas fui profissional. Fiz tudo direitinho”, diz ele.
De acordo com o governo do Amazonas, os dois bois-bumbás são responsáveis por cerca de 5 mil empregos diretos, envolvendo músicos, dançarinos, artesãos e outros.
Ali nas calçadas, torcedores das duas agremiações dividiam mesas sem problemas e a sopa de mocotó tinha boa saída. Dentro do Bumbódromo, o pirarucu à casaca era o destaque do cardápio na barraquinha logo na entrada. E ambulantes vendiam de tudo, dentro e fora da arena –além da comida, copos, camisetas, adereços indígenas, sempre com opções nas cores vermelha ou azul.
Em Manaus, quem não conseguiu ir a Parintins, pode acompanhar o festival em um grande telão montado no Largo de São Sebastião, em frente ao Teatro Amazonas, na região central, onde os torcedores se reuniram até de madrugada. Bares da cidade também ficaram cheios.
“A gente vivencia isso o ano todo aqui em Manaus. Tem o bar do Lourinho, que é do Caprichoso, que funciona o ano inteiro. Tem o bar do contrário também. E tem os outros eventos, como o Bar do Boi, lá no sambódromo, que acontece de vez em quando para a gente conhecer as novas toadas, ensaiar, e reviver as toadas antigas”, explica a professora Suelen Campos, 44, que mora em Manaus, mas foi para Parintins torcer pelo boi azul.
“Eu sou do Pará, mas vim morar em Manaus na década de 1990, quando o boi estava muito em ascensão e aí eu comecei a conhecer e gostar. A gente sempre tenta ir ao festival”, diz ela. “A minha filha é Garantido. E, meu esposo, quando está perto da minha filha, é Garantido. Quando estamos só nós dois, ele é Caprichoso. Ele é meio a meio”, diz ela.
Fonte.:Folha de S.Paulo