
Crédito, Getty Images
Em Nuwayrat, um vilarejo localizado no vale no rio Nilo a cerca de 265 km do Cairo, no Egito, viveu um homem de pele escura, cabelos castanhos, olhos amendoados, com no máximo 1,60 m de altura, que teve uma vida longeva para os padrões da época.
Ele sofria com uma artrite avançada no pé direito e no pescoço. E tinha uma ancestralidade majoritariamente relacionada ao norte da África — embora 20% de suas origens estivessem enraizadas no oeste da Ásia, na região da Mesopotâmia, no que hoje conhecemos como Iraque e Irã.
Mas o grande mistério está na sua ocupação: embora tudo indique que ele trabalhava como oleiro, na construção de peças cerâmicas, as características de seu sepultamento indicam riqueza e nobreza típica das classes mais abastadas.
O nível de detalhamento das informações que temos sobre essa pessoa sugere que a vida dela se passou em épocas mais modernas, nos últimos séculos, correto? Errado.
Estudos de radiocarbono mostram que esse sujeito morreu entre 2855 e 2570 a.C. — algo entre 4,5 mil e 4,8 mil anos atrás — poucos séculos depois da unificação do Egito e a transição entre os períodos Dinástico Inicial e o Império Antigo.
Para se ter ideia, essa foi a época da construção das primeiras pirâmides, quando o processo de mumificação artificial nem havia se tornado uma prática frequente entre monarcas e poderosos.
Os restos mortais desse homem foram encontrados em 1902, durante uma escavação. Eles estavam depositados numa urna cerâmica, que foi colocada dentro de tumba escavada numa encosta em Nuwayrat.
Esse material foi doado para o World Museum, localizado em Liverpool, no Reino Unido, onde foi um dos únicos itens do tipo a sobreviver aos bombardeios alemães durante a Segunda Guerra Mundial.
Mas, afinal, como sabemos tanto sobre esse indivíduo? Bem, graças aos avanços das ferramentas de sequenciamento genético, pesquisadores conseguiram recentemente extrair DNA de um dente do sujeito.
E a análise do genoma completo dele, associado aos estudos sobre o formato dos ossos e as evidências arqueológicas da época, permitiram traçar esse perfil tão detalhado.

Crédito, Caroline Wilkinson, Liverpool John Moores University
Um debate sobre a cor da pele no Egito Antigo
O professor Linus Girdland-Flink, da Universidade de Aberdeen, na Escócia, destacou que o homem de Nuwayrat teve uma “jornada extraordinária”.
“Ele viveu e morreu num período crítico, de muitas mudanças no Egito Antigo”, resume o pesquisador, um dos autores do trabalho recém-publicado, em comunicado à imprensa.
Entre as características físicas do indivíduo que foram desvendadas pela análise genética, um dos pontos que mais chamou a atenção envolve a tonalidade da pele dele, descrita pelos autores como uma variação “entre escura e preta”.
Essa informação joga uma nova luz num debate muito maior e complexo, que envolve a ancestralidade dos antigos egípcios e a cor de pele que eles tinham.
Obras da cultura moderna, como pinturas, filmes, quadrinhos e séries, não raro retratam os egípcios como brancos.
Algumas delas vão além e chegam a especular — sem qualquer evidência científica sólida, diga-se — que a construção das pirâmides só pode ter a autoria de seres de outros planetas.
Ao longo das últimas décadas, diversos acadêmicos criticaram essas alegações e as classificaram de preconceituosas, por simplesmente descartarem a possibilidade de que populações de fora da Europa tivessem a capacidade de criar inovações tecnológicas e monumentos que impressionam até hoje.
Para a geneticista brasileira Tábita Hünemeier, que não esteve envolvida diretamente com este estudo, conhecer as características dos indivíduos que viveram naquela época, como é o caso do homem de Nuwayrat, ajuda a desfazer muitos dos mitos sobre o Egito Antigo que persistem até hoje.
“Saber a tonalidade da pele dele é uma evidência de que os egípcios não eram todos brancos, de que essa não era a realidade. Muito menos nesse período específico, na Era das Pirâmides”, comenta a pesquisadora, que atua no Laboratório de Genômica Populacional Humana da Universidade Pompeu Fabra em Barcelona, na Espanha.
“Depois realmente houve a chegada dos macedônios [que tinham pele mais clara] no Egito. Mesmo assim, eles se misturaram com a população local [cuja pele era mais escura].”
“Porém, vale lembrar que antes dos macedônios, o Egito teve dinastias de faraós negros, os núbios”, complementa a especialista, que também integra o Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP).
Para Hünemeier, estudos como recém-publicado ajudam a “desfazer visões eurocêntricas” sobre o Egito Antigo.

Crédito, Museu de Arqueologia Garstang, Universidade de Liverpool
Outro ponto de debate e mistérios que surgiu a partir da análise do genoma, dos ossos e dos dentes do indivíduo envolve a origem e posição social dele.
Por um lado, os pesquisadores argumentam que diversas características físicas sugerem que ele era um trabalhador braçal, possivelmente um oleiro.
“As marcas no esqueleto dão pistas do estilo de vida desse indivíduo”, explicou o professor Joel Irish, que leciona Antropologia e Arqueologia na Universidade John Moores de Liverpool, em comunicado à imprensa.
“Os ossos relacionados ao ato de sentar são grandes, alargados, os braços revelam evidências de movimentos repetidos e há um grau considerável de artrite apenas no pé direito e no pescoço.”
“Embora circunstanciais, essas evidências apontam para a cerâmica e o uso de instrumentos como a roda de oleiro, que chegou ao Egito no mesmo período que ele viveu”, observou o pesquisador, que também assina o artigo.
No entanto, a urna fúnebre e o local onde o homem foi enterrado sugerem algo vinculado à riqueza, ou a um status social elevado.
“Isso não era algo disponível a oleiros daquele período. Talvez ele fosse um artesão de talentos excepcionais, ou alguém muito bem-sucedido no seu negócio”, especulou Irish.

Crédito, The Metropolitan Museum of Art
O que homem de Nuwayrat revela sobre uma civilização
Ao longo do artigo, os próprios autores ponderam que os dados encontrados contam a história de uma pessoa específica, embora eles possam exprimir e sugerir algo maior, que envolve toda sociedade daquela época.
E a informação mais relevante aqui tem a ver com a ancestralidade: como mencionado anteriormente, a análise do genoma mostrou que o homem tinha 80% do DNA relacionado ao norte da África e 20% ao oeste da Ásia.
Os 80% não são tão surpreendentes assim — afinal, o Egito fica justamente no norte da África.
Mas os 20% restantes indicam algo relevante. Alguns dos antepassados desse indivíduo vieram do oeste da Ásia, da região do Crescente Fértil, reconhecida como um dos berços de importantes inovações, como o desenvolvimento da agricultura, das cidades e das primeiras formas de escrita.
Evidências arqueológicas, como artefatos encontrados por especialistas, já demonstravam que existia algum relacionamento entre populações do Egito e do Crescente Fértil.
Agora, a partir do estudo recém-publicado, é possível encontrar evidências disso diretamente no DNA das pessoas que viveram naquela época, por meio dos processos de migração de indivíduos que vinham de outras regiões.
“Nossos resultados indicam que o contato entre o Egito e o Crescente Fértil não estava limitado à troca de coisas, como animais domesticados, plantas ou sistemas de escrita, mas também envolveu a migração humana”, escrevem os autores.
Isso pode ajudar a entender melhor como esses relacionamentos podem ter influenciado no desenvolvimento do Império Egípcio, o mais longevo da História.
Será que a escrita cuneiforme mesopotâmica serviu de base e inspiração para os hieróglifos egípcios, que surgiram alguns séculos depois? Será que as técnicas de agricultura e pecuária deram mais segurança alimentar e permitiram a transformação de povoados em cidades e metrópoles?
A pesquisadora Adeline Morez Jacobs, uma das autoras da pesquisa, destacou num comunicado à imprensa que “juntar todas as pistas do DNA, dos ossos e dos dentes de um indivíduo permitiu construir uma imagem abrangente”.
“Nós esperamos que outras amostras genéticas de pessoas que viveram no Egito Antigo possam responder com precisão quando esses movimentos de migração a partir do oeste da Ásia começaram”, complementou a especialista, que realizou estudos de doutorado e pós-doutorado na Universidade John Moores de Liverpool e no Instituto Francis Crick, ambos no Reino Unido.

Crédito, Caroline Wilkinson, Liverpool John Moores University.
Restos mortais egípcios num museu britânico?
Por fim, Hünemeier entende que o trabalho recém-publicado se destaca por ter conseguido sequenciar o genoma completo de um indivíduo que viveu há muitos anos atrás.
Segundo ela, é bem difícil recuperar o material genético inteiro por causa do dano causado pelo tempo — e, no caso do Egito, também em razão do calor intenso, que degrada essas moléculas.
Sobre os resultados obtidos, a geneticista brasileira entende que eles estão “dentro do esperado para um egípcio da época” — ou seja, pele, olhos e cabelos escuros.
“Minha impressão é que o valor desta publicação tem a ver com recuperar DNA de boa qualidade da região, de um indivíduo tão antigo e com alguma relação com a Era das Pirâmides”, complementa ela.
“Mas é bom chamar a atenção aqui que esses restos mortais estão expostos em um museu britânico. Existe toda uma discussão sobre a devolução de peças de museus aos países originários”, critica Hünemeier.

Crédito, Museu de Arqueologia Garstang, Universidade de Liverpool
Sobre esse ponto, as instituições envolvidas na pesquisa divulgaram à imprensa uma nota, em que defendem que “a exportação do sepultamento para fora do Egito pelo arqueólogo John Garstang foi aprovada sob o sistema de ‘partição’, uma estrutura legal estabelecida em 1883 que, até 1983, permitia a divisão de achados arqueológicos entre o Egito e instituições estrangeiras”.
“Sob esse sistema, materiais considerados suficientemente representados em coleções egípcias podiam ser aprovados para exportação pelas autoridades relacionadas aos museus no Cairo”
O texto destaca que Garstang “exportou oito sepultamentos para o Reino Unido sob esse arcabouço jurídico, de mais de 900 que ele escavou durante toda a carreira”.
“Os sepultamentos restantes foram mantidos no Egito, incluindo os da necrópole de Beni Hasan, nas proximidades, atualmente mantida no Museu Egípcio do Cairo”, conclui o texto.
Hünemeier também diz ter sentido falta de uma “discussão sobre como realizar o retorno de resultados da pesquisa à comunidade descendente do indivíduo que foi sequenciado”, uma prática que tem se tornado comum entre especialistas que atuam nesse ramo que une as ciências biológicas com a arqueologia.
A BBC News Brasil tentou contato com os autores da pesquisa para que eles pudessem comentar este e outros pontos, mas não foram enviadas respostas até a publicação desta reportagem.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL