O acesso à saúde é um direito de cada brasileiro. Embora a Constituição Federal de 1988 destaque o tema de maneira cristalina, a realidade é um pouco mais turva, especialmente quando estamos falando da população LGBTQIA+.
Apesar dos importantes avanços conquistados nos últimos em termos de respeito e cidadania, ainda são encontradas diversas lacunas no atendimento, o que abre espaço para o desenvolvimento e agravamento de diferentes doenças. E essa é apenas uma parte do problema.
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Pode ser um pouco complexo para uma pessoa heterossexual imaginar que sua orientação sexual poderia ser fator preponderante para o descaso em uma unidade de saúde, justamente porque a heterossexualidade é tratada como padrão.
Para ampliar essa compreensão, a médica Maria Amélia Veras, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, contextualiza as diferentes nuances da discriminação nesses espaços, cometidas pelos próprios profissionais de saúde.
Como a discriminação acontece
“Podemos citar o desrespeito ao nome social, por exemplo. Além da falta de profissionais de saúde empáticos ou competentes para atender as necessidades específicas da saúde da população trans”, explica Veras.
E as barreiras não param por aí. São comuns relatos de afastamento por quem faz o atendimento, como a recusa de contato físico e até mesmo visual durante a avaliação do paciente.
A mais recente edição de uma pesquisa que avalia o índice do estigma em relação ao HIV no país também revela dados alarmantes acerca da estigmatização de pessoas trans, independentemente da sorologia para o vírus.
Ao menos 60% dos participantes afirmaram ter sentido medo de procurar serviços de saúde por causa de sua identidade de gênero.
Enquanto isso, quase 75% relataram ter evitado a busca por atendimento devido à preocupação com a revelação da própria identidade de gênero de maneira pública.
Violências como essas evidenciadas pelo estudo se somam a um conjunto de atitudes problemáticas, como piadas, risos e deboche, que podem culminar em assédio moral e agressões físicas.
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A professora Ana Pi Videira Soares, 35, moradora de Belo Horizonte, conta que, desde o início de sua transição de gênero, um dos maiores receios era frequentar instituições de saúde.
“O primeiro motivo na época era não ter o nome social atendido e passar constrangimentos ao requerê-lo. A segunda razão era não poder ter autonomia sobre o meu corpo, tanto em tratamentos hormonais ou quaisquer outros, porque os corpos trans ainda são tratados na medicina com protocolos únicos sobre transição”, relata Soares.
Iniciativas buscam promover mais acolhimento
A professora enfatiza que atua no fomento a lugares de escuta, de denúncia e de discussões sobre novas possibilidades para a saúde dos corpos trans.
“Em um fórum que realizamos em Belo Horizonte nesse ano, construímos espaços coletivos para entender como o nosso cotidiano na saúde pública pode ser garantido com mais dignidade”, acrescenta.
Ações de empenho valoroso, mas a responsabilidade não deve ficar apenas a cargo da população. Em grande parte, o problema está relacionado aos próprios preconceitos dos profissionais. É importante frisar que também há um gargalo na formação médica sobre saúde LGBTQIA+.
Iniciativas dos setores público e privado têm buscado reverter esse quadro a partir de campanhas educativas e promoção da conscientização.
Em uma iniciativa inédita, o Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), por meio do HCX Fmusp (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), desenvolveu um curso de capacitação para aqueles que atuam na área da saúde.
A ideia é oferecer orientações para um atendimento acolhedor, técnico e humanizado à população LGBTQIA+. Para isso, a ação educativa contempla desde conceitos e terminologias fundamentais até questões específicas como hormonização, procedimentos cirúrgicos, saúde mental, planejamento reprodutivo, envelhecimento e acolhimento familiar.
Estão presentes ainda aspectos éticos, legais e sociais envolvidos no cuidado integral, respeitoso e inclusivo, que também envolve e orienta famílias no cuidado.
“Trata-se de uma resposta à demanda da população LGBTQIA+ que nem sempre recebe atendimento adequado ou especializado com todas as nuances que seriam necessárias para o seu cuidado específico”, destaca o coordenador do curso, Edson Ferreira, professor da Divisão de Ginecologia do HC-Fmusp.
Ao longo do curso, os participantes têm contato com especialistas que atuam diretamente na atenção primária, secundária e terciária. A ideia é que eles aprendam como estruturar um grupo multidisciplinar de atendimento e como conduzir práticas clínicas com base em evidências científicas e respeito à diversidade.
“O que estamos propondo é sensibilizar a classe médica para a necessidade de acolhimento de uma população, de uma escuta ativa, de entender que existem necessidades que são individuais, de não generalizar as pessoas LGBTQIA+, como se todo mundo precisasse das mesmas coisas, porque na verdade cada pessoa tem necessidades próprias”, explica Ferreira.
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Na rede privada, o Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, estrutura ações voltadas à promoção da diversidade, equidade e inclusão, com destaque para grupos de afinidade criados no âmbito de um Programa de Diversidade.
“Esse tipo de treinamento contribui diretamente para a construção de um ambiente mais acolhedor e seguro, reduzindo barreiras que historicamente afastaram pessoas trans dos serviços de saúde”, resume Maria Carolina Lourenço Gomes, diretora-executiva de Pessoas, Sustentabilidade e Responsabilidade Social do hospital.
A sensibilização sobre o uso adequado de pronomes, o acolhimento respeitoso às identidades de gênero e a revisão de processos administrativos, como a adaptação de formulários, são algumas das medidas que vêm sendo incorporadas à prática clínica.
“A resposta das equipes tem sido bastante positiva. Profissionais de diferentes áreas têm demonstrado engajamento com as propostas de formação e reconhecem a importância de aprimorar o cuidado às pessoas LGBTQIAPN+”, pontua Gomes.
Com um processo de escuta ativa promovido pelos grupos de afinidade e pelos canais de relacionamento com o paciente, a equipe tem recebido retornos positivos de pacientes trans, especialmente no que diz respeito à humanização e ao respeito à identidade de gênero.
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Fonte.:Saúde Abril