
Crédito, David Bell
- Author, Georgina Rannard
- Role, Correspondente de Clima e Ciência da BBC
Os ossos de um homem britânico, que morreu em um terrível acidente na Antártida em 1959, foram descobertos em uma geleira em derretimento.
Os restos mortais foram encontrados em janeiro deste ano por uma expedição polonesa, juntamente com um relógio de pulso, um rádio e um cachimbo.
Ele foi oficialmente identificado como Dennis “Tink” Bell, que caiu em uma fenda aos 25 anos, enquanto trabalhava para uma organização que hoje é a British Antarctic Survey.
“Eu já tinha desistido de encontrar meu irmão. Isso é simplesmente extraordinário, espantoso. Nem consigo acreditar”, disse David Bell, 86 anos, à BBC.
Foi David quem atendeu à porta da casa da família no bairro de Harrow, em Londres, em julho de 1959.
“O carteiro disse: ‘Sinto muito, mas eu não tenho boas notícias'”, se recorda. Ele foi até o andar de cima para contar aos pais.
“Foi um momento horrível”, afirma.
Em entrevista à BBC, diretamente da Austrália, onde ele mora hoje em dia, David sorri ao se lembrar das histórias da infância nos anos de 1940 na Inglaterra.
“Dennis era uma companhia fantástica. Ele era muito divertido, sempre a ‘alma da festa’.”
São memórias de um irmão mais novo que admirava as grandes aventuras do irmão mais velho.
“Não consigo esquecer isso, mas uma noite, quando eu, minha mãe e meu pai voltávamos do cinema…E preciso ser justo com o Dennis, ele tinha colocado um jornal na mesa da cozinha, mas, por cima dele, tinha desmontado o motor de uma motocicleta, e tudo estava espalhado na mesa”, diz.
“Eu me lembro do estilo dele de se vestir, ele sempre usava casacos de lona. Era apenas um sujeito comum que gostava de aproveitar a vida.”

Apelidado de “Tink”, Dennis Bell nasceu em 1934. Trabalhou na Força Aérea Real (RAF, na sigla em inglês) e se formou como meteorologista antes de ingressar na Falklands Islands Dependencies Survey, para trabalhar na Antártida.
“Ele era obcecado pelos diários de Scott”, diz David, se referindo ao capitão Robert Scott, um dos primeiros homens a chegar ao Polo Sul e que morreu em uma expedição em 1912.
Dennis foi para a Antártida em 1958. Ele foi designado para uma missão de dois anos na Baía do Almirantado, uma pequena base britânica com cerca de 12 homens na Ilha do Rei George, que fica cerca de 120 quilômetros da costa norte da Península Antártica.
“Dennis foi um dos muitos integrantes corajosos que contribuíram para a ciência inicial e exploração da Antártida debaixo de condições extremamente difíceis”, disse a professora Dame Jane Francis, diretora da British Antarctic Survey.
“Embora ele tenha desaparecido em 1959, sua memória permaneceu viva entre os colegas e no legado da pesquisa polar”, afirma.

Crédito, D. Bell
A British Antarctic Survey mantém registros meticulosos, e seu arquivista, Ieuan Hopkins, encontrou relatórios detalhados do acampamento-base de Dennis e suas aventuras na ilha inóspita e “ridiculamente isolada”.
Lendo em voz alta, Hopkins diz: “Ele é alegre e trabalhador, com um senso de humor travesso e um gosto por pegadinhas.”
O trabalho de Dennis consistia em enviar balões meteorológicos e transmitir relatórios para o Reino Unido a cada três horas, o que envolvia ligar um gerador em condições de temperatura abaixo de zero.
Descrito como o melhor cozinheiro da base, era também responsável pelo depósito de alimentos durante o inverno, quando nenhum suprimento chegava até eles.
Naquela época, a Antártida parecia ainda mais isolada do que hoje, com um contato extremamente limitado com o mundo exterior. David se recorda de ter gravado, com seus pais e a irmã, Valerie, uma mensagem de Natal nos estúdios da BBC para ser enviada ao irmão.
Ele era conhecido por seu amor pelos cachorros da raça husky que costumavam puxar os trenós pela ilha, tendo criado duas ninhadas de filhotes.

Crédito, British Antarctic Survey
Ele também participou do levantamento topográfico da ilha do Rei George, produzindo alguns dos primeiros mapas de um lugar até então amplamente inexplorado.
Foi durante uma dessas expedições de pesquisa que o acidente aconteceu, poucas semanas depois de seu 25° aniversário.
No dia 26 de julho de 1959, durante o rigoroso inverno antártico, Dennis e um homem chamado Jeff Stokes deixaram a base para escalar e mapear uma geleira.
Registros da British Antarctic Survey descrevem o que aconteceu depois disso e as desesperadas tentativas de resgatá-lo.
A neve estava profunda e os cachorros começaram a demonstrar sinais de cansaço. Dennis seguiu adiante sozinho para encorajá-los, para não estava usando seus esquis. De repente, ele desapareceu em uma fenda, deixando um buraco para trás.
De acordo com os registros, Jeff Stokes gritou bem alto, em direção ao fundo da fenda, e Dennis conseguiu gritar de volta. Jeff pegou uma corda e jogou até Dennis. Os caẽs puxaram a corda e o britânico foi içado até a borda do buraco.
Mas ele tinha amarrado a corda em seu cinto, talvez por causa do ângulo em que estava. Quando chegou à borda, o cinto quebrou e ele caiu de novo. Jeff gritou mais uma vez, mas Dennis não respondeu.
“Essa é a história que eu nunca vou superar”, disse David.

Crédito, Russell Thompson
Os relatórios do acampamento-base sobre o acidente são objetivos.
“Jeff […] nos informou que ontem Tink caiu em uma fenda e morreu. Eles esperam retomar as buscas amanhã, se o gelo permitir”, continua.
Hopkins explica que outro homem, chamado Alan Sharman, tinha morrido semanas antes, e a moral da equipe estava muito baixa.
“O trenó voltou. Recebemos os tristes detalhes. Jeff está com as mãos seriamente afetadas por congelamento. Não vamos correr mais riscos para recuperar [o corpo]”, diz o relatório feito no dia seguinte ao acidente.
Ao reler os registros, Hopkins descobriu que Dennis tinha feito o caixão para Alan Sharman.
“Minha mãe nunca superou. Ela não conseguia ver fotos dele e nem falar sobre ele”, disse David.
Ele lembra que dois homens da base de Dennis visitaram a família, levando uma pele de carneiro como um gesto de condolência.
“Mas não houve conclusão. Não houve cerimônia, não houve nada. Apenas Dennis se foi.”

Crédito, Russell Thompson
Cerca de 15 anos atrás, David foi procurado por Rod Rhys Jones, presidente do British Antarctic Monument Trust.
Desde 1944, 29 pessoas morreram trabalhando no território antártico britânico em missões científicas, de acordo com a instituição.
Rod estava organizando uma viagem para os parentes de algumas dessas 29 pessoas, com objetivo de conhecer o lugar espetacular e remoto onde seus entes queridos viveram e morreram.
David participou da expedição, chamada South 2015 (Sul 2015, na tradução literal para o português).
“O capitão parava nos locais e dava quatro ou cinco toques de sirene”, conta.
O gelo marinho estava espesso demais para que David pudesse chegar até a cabana do seu irmão na Ilha do Rei George.
“Mas foi muito, muito comovente. Parece que tirou uma pressão, um peso da minha cabeça”, disse.
Isso deu a ele uma sensação de encerramento.”E eu pensei que seria o fim”, acrescenta.

Crédito, Dariusz Puczko
Mas no dia 29 de janeiro deste ano, uma equipe de pesquisadores poloneses que trabalhava para a estação antártica polonesa Henryk Arctowski se deparou com algo praticamente à sua porta.
Dennis havia sido encontrado.
Alguns ossos estavam no gelo solto e entre as rochas depositadas ao pé da geleira Ecology, na Ilha do Rei George. Outros foram encontrados na superfície da geleira.
Os cientistas explicam que uma nova queda de neve era iminente, e por isso eles colocaram um marcador GPS para que seu “colega polar” não se perdesse novamente.
Um time de cientistas formado por Piotr Kittel, Paulina Borówka e Artur Ginter, da Universidade de Lodz, Dariusz Puczko, da Academia Polonesa de Ciências, e o pesquisador Artur Adamek, resgataram cuidadosamente os restos mortais em quatro viagens.
Trata-se de um lugar perigoso e instável, “cortado por fendas” e com inclinações de até 45 graus, de acordo com a equipe polonesa.

Crédito, Dariusz Puczko
As mudanças climáticas estão causando transformações dramáticas em muitas geleiras na Antártida, incluindo a geleira Ecology, que está passando por um derretimento intenso.
“O lugar onde Dennis foi encontrado não é o mesmo lugar onde ele desapareceu”, explica a equipe.
“As geleiras, sob influência da gravidade, movem sua massa de gelo e, com isso, Dennis se moveu”, disseram.
Fragmentos de bastões de esqui de bambu, restos de um lampião a óleo, frascos de vidro de cosméticos e fragmentos de tendas militares também foram coletadas.
“Todo o esforço foi feito para garantir que Dennis pudesse voltar para casa”, disse o time.
“É uma oportunidade de reavaliar a contribuição que esses homens deram, e também de promover a ciência e o que realizamos na Antártida ao longo de muitas décadas”, acrescentou Rod Rhys Jones.
David ainda está se sentindo sobrecarregado com tantas notícias, mas repete que está muito grato pelo que os cientistas poloneses fizeram.
“Eu só estou triste porque meus pais não puderam ver esse dia chegar”, disse.
David contou que logo vai à Inglaterra, onde ele e a irmã, Valerie, planejam colocar Dennis para finalmente “descansar”.
“É maravilhoso. Eu vou encontrar meu irmão. Você talvez diga que nós não deveríamos estar animados, mas nós estamos. Ele foi encontrado e irá para casa.”
Fonte.:BBC NEWS BRASIL