
- Author, Barbara Plett Usher
- Role, Correspondente da BBC News na África
As mulheres na cozinha comunitária da cidade sitiada de El-Fasher, no Sudão, estão tomadas pelo desespero.
“Nossos filhos estão morrendo diante dos nossos olhos”, disse uma delas à BBC.
A escassez de alimentos em El-Fasher fez os preços dispararem: o dinheiro que antes garantia refeições para uma semana hoje compra apenas uma.
Organizações internacionais de ajuda humanitária condenaram o que consideram um “uso calculado da fome como arma de guerra”.
A crise alimentar é agravada por um surto de cólera que se espalha pelos campos precários onde vivem os deslocados pelo conflito.
A organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) afirmou na quinta-feira (14/08) que o Sudão enfrenta o pior surto de cólera em anos, impulsionado pela guerra civil em curso.
Foram registrados quase 100 mil casos e 2.470 mortes no último ano, segundo a entidade, com o atual epicentro próximo a El-Fasher.
A BBC obteve imagens raras de pessoas ainda presas na cidade. Elas foram enviadas por um ativista local e filmadas por um cinegrafista freelancer.
O exército sudanês combate as Forças de Apoio Rápido (RSF, na sigla em inglês) há mais de dois anos, após os comandantes dos dois grupos promoverem, juntos, um golpe de Estado — e, em seguida, romperem.
El-Fasher, na região de Darfur Ocidental, é uma das linhas de frente mais violentas do conflito.

Os paramilitares reforçaram o bloqueio de 14 meses após perderem o controle da capital, Cartum, no início deste ano, e intensificaram a ofensiva por El-Fasher, último reduto das Forças Armadas em Darfur.
Nesta semana, os combates escalaram para um dos ataques mais intensos da RSF contra a cidade.
No norte e no centro do país, onde o Exército recuperou território da RSF, a chegada de alimentos e ajuda médica começou a aliviar o sofrimento da população civil.
A situação continua desesperadora nas zonas de conflito do oeste e do sul do Sudão.
No fim do mês passado, na cozinha comunitária Matbakh-al-Khair, em El-Fasher, voluntários transformaram ração animal em mingau.
Ali, a população tem usado o ambaz, um subproduto da produção de amendoim geralmente usado como ração para animais, como a refeição básica.
Às vezes, é possível encontrar sorgo ou milhete, grãos que podem ser usados como ração animal ou para fazer pão. No dia da filmagem, o gerente da cozinha afirmou: “Não há farinha nem pão”.
“Chegamos ao ponto de comer ambaz. Que Deus nos livre desta calamidade, não há mais nada no mercado para comprar”, acrescentou.
A Organização das Nações Unidas (ONU) reforçou o apelo por uma pausa humanitária para permitir a entrada de comboios de alimentos na cidade. O enviado da organização ao Sudão, Sheldon Yett, voltou a cobrar nesta semana que os lados em guerra cumpram suas obrigações segundo o direito internacional.
O exército autorizou a passagem dos caminhões, mas a ONU ainda aguarda a declaração oficial do grupo paramilitar.
Conselheiros da RSF disseram acreditar que a trégua seria usada para facilitar a entrega de alimentos e munição às “milícias sitiadas” do exército dentro de El-Fasher.
Eles também afirmaram que o grupo paramilitar e seus aliados estavam criando “rotas seguras” para que civis deixassem a cidade.
A RSF divulgou um comunicado negando as acusações generalizadas de que estaria atacando civis em El-Fasher, alegando que grupos armados locais estariam usando moradores como escudos humanos.
Para os moradores da cidade, a luta é permanecer vivos durante os bombardeios e conseguir o pouco de comida possível.
Agentes locais podem receber algum dinheiro emergencial por meio de um sistema bancário digital, mas o valor não é suficiente.
“Os preços nos mercados explodiram”, disse Mathilde Vu, gerente de advocacy do Conselho Norueguês para Refugiados.
“Hoje, US$ 5 mil [cerca de R$ 26.950] cobrem uma refeição para 1,5 mil pessoas em um único dia. Há três meses, o mesmo valor podia alimentá-las por uma semana inteira.”
Médicos afirmam que pessoas estão morrendo de desnutrição. Não é possível saber quantas; um relatório citando um responsável de saúde regional estimou mais de 60 mortes na semana passada.

Os hospitais não conseguem atender à demanda. Poucos ainda funcionam. Foram danificados por bombardeios e carecem de suprimentos médicos para tratar tanto os famintos quanto os feridos nos ataques contínuos.
“Temos muitas crianças desnutridas internadas, mas infelizmente não há um único sachê de [alimento terapêutico]”, disse o pediatra Ibrahim Abdullah Khater, do Hospital Al Saudi. Ele afirmou que as cinco crianças gravemente desnutridas atualmente na enfermaria também apresentam complicações médicas.
“Elas estão apenas esperando a morte”, disse.
Em crises de fome, as primeiras vítimas costumam ser as mais vulneráveis, as menos saudáveis ou aquelas com doenças pré-existentes.
“A situação é tão miserável, é tão catastrófica”, disse o médico em mensagem de voz.
“As crianças de El-Fasher estão morrendo todos os dias por falta de comida e de remédios. Infelizmente, a comunidade internacional está apenas assistindo.”
Organizações não governamentais internacionais que atuam no Sudão divulgaram nesta semana um comunicado urgente afirmando que “ataques contínuos, obstrução da ajuda e ataques contra infraestrutura crítica demonstram uma estratégia deliberada para quebrar a população civil por meio da fome, do medo e da exaustão”.
As entidades disseram que “relatos não confirmados de recente estocagem de alimentos para uso militar aumentam o sofrimento dos civis”.
“Não há passagem segura para sair da cidade, com estradas bloqueadas e, para quem tenta fugir, ataques, cobrança de taxas em postos de controle, discriminação comunitária e morte”, afirmaram.
Centenas de milhares de pessoas fugiram nos últimos meses, muitas do campo de deslocados de Zamzam, na periferia de El-Fasher, tomado pela RSF em abril.
Elas chegam a Tawila, cidade a 60 km a oeste dali, fracas e desidratadas, com relatos de violência e extorsão ao longo da estrada por grupos aliados à RSF.
A vida é mais segura nos campos superlotados, mas estes enfrentam a ameaça de doenças — a mais letal é a cólera, causada por água contaminada. O surto foi provocado pela destruição da infraestrutura de abastecimento de água e pela falta de alimentos e cuidados médicos, e agravado pelas inundações da estação chuvosa.

Ao contrário de El-Fasher, em Tawila os trabalhadores humanitários têm acesso, mas os suprimentos são limitados, afirma John Joseph Ocheibi, coordenador de projeto no local da organização The Alliance for International Medical Action.
“Temos escassez de [instalações de lavagem] e de suprimentos médicos para lidar com esta situação”, disse à BBC. “Estamos mobilizando recursos para ver de que forma podemos responder da melhor maneira.”
O coordenador de projeto da MSF, Sylvain Penicaud, estima que haja apenas três litros de água por pessoa por dia nos campos, o que, segundo ele, está “muito abaixo do mínimo necessário, o que obriga as pessoas a buscar água em fontes contaminadas”.
Zubaida Ismail Ishaq está deitada na clínica improvisada. Grávida de sete meses, magra e exausta, conta uma história de trauma repetida por muitos.
Ela relata que costumava negociar quando tinha algum dinheiro, antes de fugir de El-Fasher. Seu marido foi capturado por homens armados na estrada para Tawila. Sua filha sofreu uma lesão na cabeça.
Zubaida e a mãe contraíram cólera pouco depois de chegar ao campo.
“Bebemos água sem ferver”, disse. “Não temos ninguém para nos trazer água. Desde que cheguei aqui, não me restou nada.”
De volta a El-Fasher, ouvimos apelos de ajuda das mulheres reunidas na cozinha comunitária — qualquer tipo de ajuda.
“Estamos exaustas. Queremos que este cerco acabe”, disse Faiza Abkar Mohammed. “Mesmo que lancem comida do ar, qualquer coisa — estamos completamente exaustas.”
Fonte.:BBC NEWS BRASIL