Em janeiro de 2024, chuvas fortes no Rio de Janeiro fizeram o rio Acari transbordar. A enchente que atingiu o bairro de mesmo nome deixou uma pessoa morta e danificou ao menos 20 mil casas, segundo a associação de moradores.
“A gente tem enchentes em Acari de duas a três vezes no ano. A do ano passado extrapolou o que a gente já entendia como normalidade, no sentido do que era padrão”, diz a assistente social Letícia Pinheiro, integrante do Coletivo Fala Akari.
Os moradores de Acari têm sentido os impactos da crise climática, afirma Pinheiro. “A enchente está cada vez maior, o calor cada vez maior. Havia uns meses em que prevíamos a enchente, agora já não está no período previsto”, diz. “O tema enchente é falado diariamente aqui.”
O bairro e complexo de favelas participa da pesquisa Retratos das Enchentes, do Instituto Decodifica, que mapeia os riscos e impactos das enchentes, além das soluções encontradas para elas, em territórios periféricos dos estados do Rio de Janeiro, Pernambuco e Maranhão.
A região de Acari, Pavuna e Irajá, cortada pelo rio Acari, tem 31,3 mil residências (34% do total) em alta vulnerabilidade a enchentes e inundações, segundo dados do projeto Rio 60°, da Ambiental Media em parceria com a UFF (Universidade Federal Fluminense). O levantamento mostra que favelas e periferias concentram o maior risco na capital carioca.
“Mas qual o perfil dessas pessoas? Quais são suas características demográficas? Por que vivem ali? Pelo que já precisaram passar?”, questiona a socióloga Iná Odara Cholodoski, uma das desenvolvedoras da pesquisa no Instituto Decodifica.
Segundo o instituto, faltam dados de qualidade sobre o impacto das enchentes nas periferias, apesar de serem áreas historicamente afetadas e cada vez mais expostas às mudanças climáticas.
“A ausência de informação já é um dado. Seja porque não se quer ter notificações sobre isso, porque não há interesse público em debater sobre ou porque o tipo de população que vive nesses espaços não é pleiteada”, diz a socióloga.
O projeto pretende preencher essa lacuna através da geração cidadã de dados —processo em que os próprios moradores produzem informações a partir de seus saberes. Uma prévia dos resultados deve ser compartilhada na COP30, a conferência sobre clima da ONU (Organização das Nações Unidas), marcada para novembro em Belém.
A pesquisa se divide em três etapas. Começa com grupos focais que reúnem lideranças locais, segue com oficinas de cartografia social e educação climática junto aos moradores, e se encerra com a aplicação de questionários nas comunidades, mapeando vulnerabilidades, impactos das enchentes e formas de organização diante de eventos extremos.
Durante as oficinas, a cartografia social permitiu que moradores identificassem pontos críticos de alagamento e locais de apoio comunitário —igrejas, escolas, casas de vizinhos— que funcionam como abrigo quando a água invade a região.
“Quando pensamos em geração de dados, não pensamos só em dados sobre sofrimento ou vulnerabilidade”, diz a socióloga do Instituto Decodifica. “São diversas estratégias que as pessoas adotam frente à falta de ação do poder público e elas são saberes.”
Além de mapear riscos e soluções, o projeto ajuda os moradores a reconhecerem os impactos da crise climática e diferenciar os conceitos de enchente, alagamento e inundação.
“A gente valoriza muito a oportunidade de aproximar essa temática da população periférica, que muitas vezes não a acessa. Não entende que sofre racismo ambiental, não entende o porquê, e não tem oportunidade para falar sobre”, diz Anie Campelo, líder da Comissão Ambiental Jaboatão dos Guararapes. Segundo ela, a iniciativa também é uma ferramenta de educação.
Campelo participa da pesquisa nos bairros de Passarinhos, no Recife, e Dois Carneiros, em Jaboatão dos Guararapes (PE). As cidades são respectivamente a terceira e quarta do país com maior número de pessoas em situação de vulnerabilidade.
No primeiro semestre, os dois bairros passaram por alagamentos, que atrasaram a coleta de dados.
A pesquisa está na fase de aplicação de questionários no Rio de Janeiro e em Pernambuco. No Maranhão, começará nos próximos meses.
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No bairro de Kennedy, em Nova Iguaçu (RJ), os relatos do impacto das enchentes na saúde dos moradores chamaram a atenção dos pesquisadores. Foram ouvidos casos de doenças de pele e outras emergências agravadas pela exposição à água contaminada.
“É um ciclo de violações. Antes, durante e depois das chuvas essas famílias continuam sendo negligenciadas e colocadas em risco”, diz Nathalia Silva, coordenadora do Observatório Iguaçu.
As lideranças comunitárias entrevistadas também destacam a importância da preservação da memória nas periferias.
“Se a gente não pauta e sistematiza esses relatos da população, dados que trazem uma identidade local e a percepção do morador, isso se perde. Vai junto com a própria enchente”, diz Pinheiro. “A memória também é uma estratégia de construção de futuro”.
O objetivo final, conclui Cholodoski, é que o retrato das enchentes desenhado pelos moradores ajude a colocar os impactos sofridos nas periferias no centro da agenda climática e incentive políticas públicas efetivas.
O projeto Excluídos do Clima é uma parceria com a Fundação Ford.
Fonte.:Folha de S.Paulo