Apesar de aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) há quase um ano, o Cadastro Nacional de Pedófilos jamais saiu do papel e o governo – que tenta capitalizar politicamente o tema da sexualização de crianças nas redes sociais – quer terceirizar a responsabilidade pela implantação do sistema e diz que cabe ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a operacionalização da medida.
Diante desse cenário, congressistas e especialistas denunciam a inércia e a ineficiência do Executivo e do Judiciário em agir em conjunto no enfrentamento à pedofilia e na defesa de crianças e adolescentes. Enquanto isso, o Executivo e parlamentares governistas querem aproveitar que o tema está em alta para aprovar leis que podem restringir a liberdade de expressão.
A lei que cria o Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais deveria permitir a consulta pública dos nomes completos e dos CPFs de pessoas condenadas, em primeira instância, por crimes contra a dignidade sexual, como estupro e abuso de vulnerável. A norma altera o Código Penal e atribui ao Judiciário a responsabilidade de divulgar esses dados nos sistemas de consulta processual, podendo manter o sigilo em casos específicos ou restaurá-lo em caso de absolvição. Ela também prevê o monitoramento dos condenados por meio de tornozeleiras eletrônicas, medida que envolve os sistemas de segurança pública.
A lei diz que a gestão do novo cadastro ficará a cargo do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), com base nas informações do Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Crime de Estupro, já existente. Mas a pasta afirma que a operacionalização do sistema cabe ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que não respondeu aos questionamentos da Gazeta do Povo.
Para o deputado federal General Girão (PL-RN), há indignação com a demora. Ele faz críticas à forma como o governo tenta tratar do tema no momento e alerta que o cadastro de pedófilos deveria ter sido implantado desde a aprovação da Lei 15.035/2024, no fim do ano passado. Segundo ele, o assunto vem sendo politizado, sem as devidas ações necessárias.
O parlamentar diz que a falta de ação do governo é um claro descaso com as crianças e famílias, especialmente pelo caráter urgente das medidas de proteção. Girão, que foi secretário de Segurança por mais de oito anos em diferentes regiões do Brasil, criticou a ausência de um sistema unificado com informações de criminosos, um problema que ele já enfrentou em sua atuação na segurança pública.
O deputado argumenta que a criação de um banco de dados acessível sobre pedófilos para acesso da população e das autoridades seria crucial para garantir a captura e monitoramento de criminosos perigosos.
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Deputado diz que cadastro impediria que criminosos sexuais continuassem fazendo vítimas
Segundo o deputado Girão, o Cadastro Nacional de Pedófilos não é apenas uma ferramenta para rastrear foragidos, mas um mecanismo essencial para impedir que criminosos sexuais continuem atuando em diferentes regiões do país e mesmo pelas redes sociais. “Eu não consigo aceitar que esses criminosos sejam tratados como qualquer outro, é um crime monstruoso”, afirmou.
O congressista não poupou críticas à postura governamental, que, segundo ele, “não cobrou nada” sobre a implementação do cadastro de pedófilos, ignorando as necessidades de segurança da população e, particularmente, o direito das crianças a uma proteção mais eficaz contra abusadores”. Para Girão, trata-se de uma falha que demonstra “descaso e negligência” das autoridades, que ainda não tomaram as ações necessárias para proteger as vítimas mais vulneráveis.
Ao reforçar a importância da criação do cadastro de pedófilos, Girão alertou para o risco de criminosos sexuais se deslocarem entre os estados sem serem identificados, seja em ações físicas ou virtuais, perpetuando crimes contra crianças e adolescentes. A falta de um sistema de identificação unificado, que permita às forças de segurança acessarem os dados de criminosos em tempo real é vista por ele como uma falha estrutural que precisa ser corrigida com urgência.
Em março deste ano, a senadora Margareth Buzetti (PSD-MT), que foi a propositora da Lei para criação do Cadastro de Pedófilos, cobrou publicamente o Ministério da Justiça e o CNJ para a implementação dos registros. Ela denunciou que a previsão em lei ainda não havia sido concretizada – condição que segue assim até hoje, mesmo tantos meses após a sanção.
“Fizemos o mais difícil, que foi tornar obrigatória a criação desse cadastro, para que todos possam acessar o nome desses criminosos. No entanto, tanto tempo após a sanção da lei, o cadastro continua inexistente”, afirmou Buzetti.
Ela enfatizou a urgência da medida e disse que a criança vítima da violência não pode esperar. “Quem violenta uma criança hoje pode fazer o mesmo amanhã”, lamentou.
A senadora também sublinhou que estudos apontam que mais de 50% dos agressores que saem da prisão voltam a cometer crimes no primeiro ano. “Precisamos agir agora”, reforçou.
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Ministério da Justiça diz que não é responsável pela operacionalização da lei
Contrariando o que prevê o próprio texto da lei, o Ministério da Justiça e Segurança Pública disse à Gazeta do Povo que não é responsável pela criação e gestão do Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais. A pasta disse que a legislação altera o Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Crime de Estupro, criado pela Lei 14.069/2020, ao incluir dados como o número de CPF dos condenados e detalhar a fonte de custeio para o sistema.
O ministério disse que apesar de ser citado na lei no que se refere ao financiamento do cadastro, por meio do Fundo Nacional de Segurança Pública, a responsabilidade pela gestão dos dados é do Conselho Nacional de Justiça. O MJSP disse ainda que os dados relacionados aos condenados no sistema de justiça criminal são reunidos na base de dados do CNJ, que recebe informações fornecidas pelos Tribunais de Justiça de todo o país. O CNJ não havia respondido aos questionamentos feitos pela Gazeta do Povo até a publicação da reportagem .
O texto da lei não especifica diretamente um único responsável pela implementação do cadastro de pedófilos, mas os principais responsáveis por colocá-la em prática vão desde o Judiciário à estrutura governamental.
Cabe ao Poder Judiciário tornar públicos os dados dos condenados após sentença em primeira instância, cabe a ele decidir se pode manter o sigilo quando houver justificativa fundamentada e também restaurar o sigilo, se o réu for absolvido em grau recursal.
Cabe ao Conselho Nacional de Justiça e aos Tribunais de Justiça garantir que o sistema de consulta processual seja atualizado conforme a nova regra com a exibição pública de nomes e CPFs. Esses órgãos também deveriam atuar na estruturação e normatização do sistema eletrônico de consulta pública.
Já o governo federal, por meio do Ministério da Justiça e Segurança Pública, a partir da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), deveria auxiliar na criação e gestão do cadastro, conforme previsto no art. 2º-A da Lei nº 14.069/2020, que foi modificada pela atual legislação, assim como o Sistema Penal e de Segurança Pública (inclusive polícias e sistemas de monitoramento eletrônico), que deve executar o monitoramento eletrônico dos condenados com tornozeleiras, como previsto no § 3º do art. 234-B.
O criminalista Gauthama Fornaciari, formado pela Universidade de São Paulo (USP) e membro da Gauthama Fornaciari Advocacia, disse não ter dúvidas de que o tema sobre a adultização e sexualização de crianças e adolescentes tem sido usado como mecanismo de ação política, mas faz um alerta sobre a lei quanto à criação do cadastro de pedófilos. “A rigor, entendemos que o cadastro deve ser de uso restrito das autoridades públicas, para utilização em sede de investigação criminal e cooperação entre os entes federativos”, disse.
“O acesso por particular pode ser feito, desde que haja decisão judicial. A consulta pública fere garantias constitucionais do condenado, e não tem eficácia na prevenção de crimes”, opinou.
Para o especialista, esse pode ser um dos pontos de entrave, apesar de não justificáveis, para que o Ministério da Justiça e o CNJ ainda não tenham implantado o sistema.
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Adultização e sexualização de crianças ganharam destaque a partir de vídeo de influenciador
O amplo debate sobre a sexualização e exploração de crianças e adolescentes foi reforçado neste mês de agosto após a publicação de um vídeo do influenciador Felipe Bressanim Pereira, conhecido nas redes sociais como Felca . Em cerca de 40 minutos no material divulgado no YouTube, Felca falou da adultização de crianças e adolescentes nas redes sociais e a exploração financeira e sexual delas.
Ele é humorista, tem 27 anos e conta com mais de seis milhões de inscritos no YouTube e 17 milhões de seguidores no Instagram. Neste mês, ganhou destaque ao publicar o vídeo “Adultização”, no qual denuncia, entre outros casos, um outro influenciador por suposta exploração sexual de menores nas redes sociais — conteúdo que já ultrapassou 40 milhões de visualizações. A repercussão da denúncia impulsionou uma investigação que resultou na prisão do suspeito e de seu companheiro em São Paulo.
Apesar da repercussão sobre o tema e mesmo após encontro com influenciadores na última semana em um evento chamado de “Leis e Likes”, ministros do STF não se pronunciaram publicamente sobre a adultização e a exploração de crianças e adolescentes nas redes.
Em julho, antes do assunto ganhar o debate nacional, o presidente do STF e do CNJ, ministro Luís Roberto Barroso, disse durante participação em evento organizado pelo ministro Gilmar Mendes, em Lisboa, que a regulação das redes sociais e da inteligência artificial no Brasil não representa censura, mas uma forma de proteção à sociedade.
Barroso afirmou que impedir a disseminação de conteúdos como pornografia infantil, racismo, terrorismo, incitação ao suicídio e feminicídio é uma medida de responsabilidade, e não de repressão à liberdade de expressão. Segundo ele, o modelo brasileiro tenta buscar um equilíbrio entre a liberdade total adotada nos Estados Unidos e o que ele classifica como “rigor europeu”, que exige decisão judicial para remoção de conteúdos.
Barroso também destacou que a Suprema Corte só entrou no debate porque foi acionada para decidir sobre casos concretos, e defendeu que crimes evidentes, como incitação à violência, sejam removidos pelas plataformas de forma imediata, sem necessidade de autorização judicial. Já conteúdos subjetivos, como calúnia e difamação, deveriam passar pelo crivo da Justiça.
Governo Lula inventa projeto de lei sobre regulação das redes, mas não implementa o que já foi aprovado
Além de não adotar medidas de combate à pedofilia, como implantar o Cadastro de Pedófilos, o governo tenta tirar proveito político do tema para criar e forçar a tramitação de um projeto de lei que pode ser restritivo e punitivo contra a liberdade de expressão a partir da regulação das redes sociais, alertam congressistas e especialistas.
Além dessa ideia de um novo projeto, já foi aprovado no Senado o PL 2628/2022, do senador Alessandro Vieira (MDB-SE). Esse é o projeto sobre o tema que está com a tramitação mais avançada e está sendo debatido pela Câmara nesta semana.
Já a oposição prefere um projeto do deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), que propôs um texto alternativo. De acordo com o líder do PL na Câmara, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que defende a proposta alternativa, o projeto de Nikolas é o “ideal”, enquanto o que está em tramitação (PL 2628/2022), apoiado pelo governo e de autoria do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), é “péssimo” e restritivo.
A proposta de Nikolas Ferreira estabelece que as plataformas digitais só seriam punidas após notificação ou denúncia, que seria vedada a remoção de conteúdo baseada apenas em juízos subjetivos ou discricionários da plataforma e as decisões de remoção devem ser fundamentadas e registradas para eventual auditoria ou revisão judicial. Ou seja, a direita avalia que o texto de Nikolas não coloca em risco a liberdade de expressão.
Para Marcelo Almeida, a adultização e sexualização de crianças e adolescentes não são temas recentes nas redes sociais. Segundo ele, leis que já existem poderiam inibir criminosos, cessar atos repetitivos e punir transgressores.
“O que vimos a partir da denúncia é algo que todos sabiam. O governo sabia, as autoridades judiciais e policiais sabiam, não é uma novidade. O que falta é efetividade para punir quem usa crianças e adolescentes para fins de exploração sexual e monetização nas redes. Muitos exploradores e pedófilos já poderiam ter sido punidos”, alerta.
“Esse debate já está sendo usado pelo governo para tratar da regulação restritiva das redes sociais. Isso não está nas entrelinhas, isso é claro e evidente”, diz. Segundo ele, além do uso do discurso politizado sobre regulação das redes sociais, é essencial a criação de núcleos de proteção, prevenção e punição efetiva para quem pratica crimes contra crianças e adolescentes.
Fonte. Gazeta do Povo