Uma prova de redação no vestibular da Universidade Federal do Sergipe (UFS) foi cancelada na última semana após associar e estimular os candidatos a também associarem um suposto crescimento do neonazismo no Brasil à eleição do ex-presidente Jair Bolsonaro e ao “avanço da direita política” no país. O tema foi proposto aos alunos que disputavam vagas para cursos de Educação a Distância (EAD) no dia 10 de agosto e causou indignação de estudantes, professores e autoridades.
“Assédio ideológico claro, escancarado e devidamente documentado”, afirmou a professora Denise Leal Albano, do curso de Direito da UFS, em seu perfil na rede X. “Isso é um absurdo e iremos cuidar para que essa atitude leviana de proselitismo político e ideológico não fique impune”, continuou o vereador Lúcio Flávio (PL), de Aracaju, pelo Instagram.
Na prova, os candidatos foram provocados a escrever sobre o “avanço do neonazismo no Brasil” e os “desafios para a democracia no século XXI”. Para isso, o vestibular apoiou o tema em dois textos: o primeiro, com o título “A ameaça atual: neonazismo no século XXI” e o segundo, intitulado “A eleição de Jair Bolsonaro”.

De acordo com o primeiro conteúdo de apoio, existiriam “mais de 500 células neonazistas ativas no país, especialmente nas regiões Sul e Sudeste”, e esses grupos usariam, muitas vezes, retórica extremista disfarçada de “liberdade de expressão” ou “patriotismo”.
Já o segundo texto afirmava que as células neonazistas teriam se multiplicado no país a partir de 2019, “na esteira do discurso do presidente Jair Bolsonaro e do avanço da direita política no Brasil”. Citava, ainda, que esses movimentos se identificariam com o “nacionalismo exacerbado do bolsonarismo”.

A prova exigia, então, que o aluno apresentasse uma “proposta de intervenção” que respeitasse os “princípios democráticos” e que, ao mesmo tempo, garantisse “a dignidade humana e o respeito à diversidade”. O candidato que fugisse do tema proposto receberia nota zero na redação.
Ação violou preceitos constitucionais, aponta especialista
À Gazeta do Povo, a professora da UFS Denise Albano afirma que propor um tema como esse em prova de vestibular de universidade pública é ilegal e contraria os princípios que regem a educação. “Em seu artigo 206, a Constituição Federal estabelece que o ensino deve respeitar o princípio da pluralidade de ideias”, cita a especialista.
Segundo ela, a Constituição também apresenta no artigo 5° que “ninguém será privado de direitos por motivos de crença religiosa ou convicção política”. Portanto, explica, a Lei foi violada quando a universidade impôs que os candidatos ao ingresso na instituição escrevessem redação com base em textos de viés político-ideológico.
“Isso condicionou os estudantes a expressar uma determinada convicção política, violando claramente os preceitos constitucionais”, esclareceu, ao citar que a prova ainda estabeleceu um critério ilegítimo, “que é a seleção de alunos por inclinação ideológica”.
Para o vereador Lúcio Flávio (PL), a situação causou uma “experiência constrangedora” aos estudantes, e um deles levou o caso ao seu gabinete. “Fiquei indignado e prometi tomar todas as providências cabíveis contra os responsáveis por este absurdo”, relatou o parlamentar, que denunciou o caso em suas redes sociais.
“Não havia dúvidas da afronta à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) através do crime de proselitismo político em ambiente público educacional”, disse. “Confirmou-se a doutrinação ideológica”, continuou.
Após repercussão negativa, UFS cancelou a prova
Após as denúncias e a forte repercussão, a Universidade Federal de Sergipe cancelou a prova em questão. Em nota publicada no site da instituição, a UFS lamentou o ocorrido e informou não possuir acesso prévio ao conteúdo das questões, pois os testes seriam elaborados por profissionais contratados para prestar serviços à Comissão de Concursos Vestibulares (CCV).
A professora entrevistada pela Gazeta do Povo, no entanto, esclarece que alguns servidores que integram a comissão do vestibular da UFS selecionam e aprovam o conteúdo. Ela também informa que a reitoria deve estabelecer diretrizes ao órgão da universidade que realiza o vestibular a fim de que a atuação seja ética e respeite os princípios e regras que regem a educação do país.
“Se não o fez, houve grave omissão do atual reitor. Se o fez e esses servidores não seguiram as orientações e violaram preceitos jurídicos, impõem-se apurar as devidas responsabilizações em processos administrativos e até judiciais”, disse a educadora.
Universidade afirma prezar pela “democracia, pluralidade e diálogo”
Na nota, a UFS também afirmou ser contrária a qualquer forma de discriminação, polarização política ou radicalismo ideológico. “Somos uma instituição que preza pela democracia, pluralidade e diálogo, pautando-se sempre pelo respeito à diversidade de pensamentos, ideias e identidades”.
No entanto, Denise Albano aponta que essa não é a realidade. “Recebo relatos de alunos reprovados em processos de seleção para programas de pós-graduação em razão do tema do seu projeto e referencial teórico ser de pensadores ‘conservadores’”, ilustra, ao citar ainda o incentivo dado pela universidade para realização de eventos relacionados à esquerda.

No dia 16 de maio deste ano, por exemplo, a UFS recebeu o Encontro dos Estudantes Petistas de Sergipe, evento que valeu oito horas complementares para os alunos participantes e que foi divulgado nas redes sociais.
“Mas se acontece algum evento promovido por estudantes e professores liberais-conservadores, eles invadem para tumultuar ou fazem ameaças”, lamenta Denise, ao citar que algumas de suas alunas tentaram reservar um espaço da universidade para realizar uma missa, mas precisariam pagar pelo evento.
“O pró-reitor exigiu que eu assinasse um ‘contrato oneroso’ assumindo os custos pelo uso do espaço, gasto de energia, e temendo que infiltrados danificassem algo”, recorda. “Eu desisti”.
Nomeação do atual reitor da UFS foi comemorada por políticos de esquerda
De acordo com veículos de imprensa do estado, a nomeação do atual reitor da UFS, André Maurício Conceição de Souza, foi amplamente celebrada por lideranças de esquerda, como o deputado federal João Daniel (PT), o ex-governador Jackson Barreto, a vereadora de Aracaju Sônia Meire (PSOL), e a deputada estadual Linda Brasil (PSOL).
“Essa nova gestão carrega consigo a responsabilidade de garantir uma UFS que escuta, acolhe e avança, sempre pautada pelo diálogo, pela ciência e pelo respeito à pluralidade que nos fortalece”, afirmou a deputada Linda Brasil na época da nomeação.
A Gazeta do Povo tentou contato com a UFS, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
Fonte. Gazeta do Povo