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25 de agosto de 2025

Russia Today: como a Rússia está tentando silenciosamente conquistar o mundo

Russia Today: como a Rússia está tentando silenciosamente conquistar o mundo

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Van da TV estatal russa RT estacionada em frente à Catedral de São Basílio e ao Kremlin, em Moscou

Crédito, MLADEN ANTONOV/AFP via Getty Images

    • Author, Juliana Gragnani
    • Role, Editora, Unidade Global de Desinformação da BBC
    • Author, Maria Korenyuk
    • Role, Unidade Global de Desinformação da BBC

Javier Gallardo gosta de começar a manhã assistindo a um programa de música clássica na televisão.

A música faz parte da sua rotina e o ajuda a entrar no clima antes do seu dia de trabalho como motorista de caminhões.

Mas, em uma segunda-feira de junho, ele ligou a televisão e, em vez de música, encontrou a tela repleta de imagens de uma zona de guerra. Era um noticiário de um canal do qual ele nunca havia ouvido falar.

“O que está acontecendo?”, ele se perguntou.

Depois de 20 minutos, Gallardo desligou a TV. “Não consegui acompanhar aquilo.”

Um logotipo verde no canto inferior da tela mostrava as letras “RT”. E, pesquisando na internet, ele descobriu que se tratava de um canal russo.

Gallardo mora no Chile. Aparentemente, a Telecanal, um canal de TV privado do país, entregou seu sinal para a emissora jornalística RT, financiada pelo Estado russo e antes conhecida como Russia Today.

Diretores não identificados da TV Russia Today (RT) na sua sala de operações em Moscou, no dia 8 de junho de 2018

Crédito, YURI KADOBNOV/AFP via Getty Images

Legenda da foto, Os EUA, o Reino Unido, o Canadá e a União Europeia impuseram restrições à RT

A agência reguladora de rádio e TV do Chile deu início a procedimentos para impor sanções contra a Telecanal por possível violação da lei de rádio e televisão do país. O organismo aguarda uma resposta do canal.

A Telecanal não respondeu ao pedido de comentários da BBC, até a publicação desta reportagem.

Enquanto isso, os telespectadores ficaram desorientados.

“Fiquei preocupado”, reconhece Gallardo. “Eles não anunciaram nada antecipadamente e eu não conseguia entender o motivo.”

Nos últimos três anos, o canal russo RT e a rádio e agência de notícias Sputnik expandiram sua presença internacional. Somados, os dois órgãos, agora, transmitem para toda a África, os Bálcãs, Oriente Médio, sudeste asiático e para a América Latina.

Esta expansão coincide com as proibições estabelecidas contra esses veículos de comunicação em diferentes países do Ocidente.

A editora-chefe da RT, Margarita Simonyan, comparece a uma cerimônia de assinatura de documentos. Ao fundo, o presidente russo, Vladimir Putin

Crédito, Kirill KUDRYAVTSEV/AFP via Getty Images

Legenda da foto, Em 2024, autoridades americanas impuseram sanções a executivos da RT, incluindo sua editora-chefe, Margarita Simonyan

As medidas culminaram em 2024, quando autoridades americanas impuseram sanções a executivos da RT, incluindo sua editora-chefe, Margarita Simonyan. O motivo foram supostas tentativas de prejudicar a “confiança do público” nas instituições do país.

A decisão foi tomada em meio a acusações de que o Kremlin estaria orquestrando uma campanha generalizada para interferir nas eleições presidenciais do ano passado nos Estados Unidos. A RT negou qualquer interferência.

Mas, em outras partes do mundo, a influência da RT só se expandiu.

De 2023 para cá, a RT abriu um escritório na Argélia, lançou um serviço de TV em idioma sérvio e criou programas de treinamento gratuitos, destinados a jornalistas da África, sudeste asiático, Índia e China.

A emissora também anunciou a abertura de um escritório na Índia. Já a Sputnik inaugurou uma redação na Etiópia, em fevereiro.

Tudo isso coincide com um aparente enfraquecimento da imprensa ocidental em algumas regiões.

Cortes orçamentários e mudanças de prioridades na política externa fizeram com que certos órgãos de imprensa reduzissem sua presença e até se retirassem de algumas partes do mundo.

Dois anos atrás, a BBC encerrou seu serviço de rádio em árabe, em favor do seu serviço digital, que fornece áudio, vídeo e texto no idioma. Posteriormente, a BBC lançou serviços de rádio emergenciais para o Sudão e a Faixa de Gaza.

Naquele mesmo ano, a Sputnik criou um serviço no Líbano que transmite 24 horas por dia, ocupando o espaço deixado pela BBC News Árabe.

Paralelamente, a Voz da América — serviço de rádio internacional financiado pelo governo dos Estados Unidos — demitiu recentemente a maior parte dos seus funcionários.

“A Rússia é como a água: onde houver rachaduras no concreto, ela se infiltra”, afirma a cientista política Kathryn Stoner, da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos.

Mas qual é o objetivo da Rússia? E o que significa este aparente crescimento do poder da sua imprensa em certas regiões do mundo, em uma era de mudanças na ordem mundial?

‘Nem todos são teóricos da conspiração’

“[Os países fora do Ocidente são] território muito fértil, intelectual, cultural e ideologicamente falando, [devido aos seus] sentimentos antiamericanos, antiocidentais e anti-imperialistas remanescentes”, explica o professor de Estudos sobre a Rússia Stephen Hutchings, da Universidade de Manchester, no Reino Unido.

Ele defende que a propaganda russa também é difundida de forma inteligente.

Seu conteúdo é calibrado para atender a públicos específicos, mesmo se for preciso adotar diferentes posições ideológicas em diferentes regiões.

Logomarcas do canal de TV russo RT nas janelas da sede da empresa

Crédito, KIRILL KUDRYAVTSEV/AFP via Getty Images

Legenda da foto, A RT é uma emissora jornalística financiada pelo Estado russo

A percepção da RT nos diversos países é um exemplo.

No Ocidente, ela é frequentemente considerada um “agente do Estado russo e propagador de desinformação”, segundo o professor.

Mas, em outras partes do mundo, ela é frequentemente considerada uma emissora legítima, com linha editorial própria.

Com isso, seus espectadores ficam susceptíveis a acreditar no seu conteúdo, “não apenas teóricos da conspiração malucos que caem ingenuamente na desinformação”, nas palavras do professor de Relações Internacionais Rhis Crilley, da Universidade de Glasgow, no Reino Unido.

Ele acredita que a cobertura do mundo pela RT pode atrair grandes audiências — “pessoas que estão corretamente preocupadas com as injustiças globais ou com eventos nos quais eles percebem o envolvimento do Ocidente”.

‘Manipulação muito cuidadosa’

Superficialmente, o site internacional da RT parece um portal noticioso padrão, com reportagens corretamente apuradas sobre determinadas notícias.

“[É] uma manipulação muito cuidadosa”, defende a professora de Política e Estudos Internacionais Precious Chatterje-Doody, da Universidade Aberta, em Londres. Ela escreveu um livro sobre a RT, em conjunto com os professores Hutchings, Crilley e outros autores.

Os pesquisadores analisaram os noticiários internacionais da emissora em um período de dois anos, entre maio de 2017 e maio de 2019. Eles concluíram que a curadoria das suas reportagens (a seleção de quais notícias são cobertas e quais ficam de fora) se enquadrava em certas narrativas.

Os estudiosos concluíram, por exemplo, que as convulsões sociais verificadas em países europeus eram priorizadas como temas de reportagens. Já os exercícios militares eram preferências frequentes na cobertura doméstica da Rússia.

A emissora também apresenta afirmações explicitamente falsas. Ela retrata a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, por exemplo, como uma “reunificação” pacífica, negando as claras evidências de envolvimento militar no processo.

A RT também negou sistematicamente as evidências de crimes de guerra cometidos pela Rússia na Ucrânia, desde a invasão do país, em 2022.

O presidente russo Vladimir Putin de terno, olhando para o lado

Crédito, SERGEI BOBYLYOV/AFP via Getty Images

Legenda da foto, ‘A Rússia é como a água: onde houver rachaduras no concreto, ela se infiltra’, afirma a cientista política Kathryn Stoner, da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos

A RT também publicou reportagens com comentaristas que culpavam a Ucrânia por ter derrubado o voo MH17 da Malaysia Arlines, em julho de 2014.

A agência das Nações Unidas especializada na aviação civil concluiu que a Federação Russa foi responsável pelo incidente e investigadores internacionais descobriram que um sistema de mísseis transportado da Rússia para o leste ocupado da Ucrânia foi utilizado pelos russos e separatistas pró-Rússia para atingir o avião.

Mas o surpreendente foi a opinião do público sobre esta cobertura.

Entre 2018 e 2022, os pesquisadores entrevistaram 109 pessoas que assistiam à RT no Reino Unido, antes que a agência reguladora britânica Ofcom revogasse sua licença de transmissão no país.

Chatterje-Doody conta ter observado que muitos deles afirmaram terem percebido que “a RT é tendenciosa”, mas não detinham as ferramentas necessárias para discernir o que era verdade e o que não era.

Mas, com base na sua pesquisa, a professora alerta que “[o público] não conhece necessariamente a forma exata em que a RT é tendenciosa e de onde vem a desonestidade da sua cobertura”.

Por que a Rússia ampliou seu foco na África

A expansão mais recente da imprensa estatal russa se deu na África, segundo Hutchings.

Em fevereiro, autoridades russas viajaram para a Etiópia, para a inauguração de um novo centro editorial da Sputnik.

A agência já transmite para diversas partes da África, em inglês e francês. Agora, ela ampliou sua cobertura, incluindo o idioma amárico, uma das línguas oficiais da Etiópia.

A RT também reorientou seu canal em francês para atingir nações africanas de língua francesa, além de redirecionar para o continente fundos antes dedicados a projetos em Londres, Paris, Berlim e nos Estados Unidos, segundo a editora-chefe da emissora.

Van de transmissão da TV Russia Today (RT), controlada pelo Estado russo, estacionada em frente à Catedral de São Basílio e ao Kremlin, perto da Praça Vermelha, em Moscou

Crédito, MLADEN ANTONOV/AFP via Getty Images

Legenda da foto, Hutchings afirma que a maior expansão recente da imprensa estatal russa se deu na África

No ano passado, a imprensa estatal russa afirmava que a RT mantinha sete escritórios na África, mas esta informação não pôde ser verificada de forma independente.

Muitos africanos já possuem visões favoráveis à Rússia, geradas pelo sentimento anticolonialista e anti-imperialista da região, aliado ao legado do apoio soviético aos movimentos de independência durante a Guerra Fria (1947-1991).

E, com este novo foco, a Rússia espera reduzir a influência do Ocidente, estabelecer apoio às suas ações e construir laços econômicos, segundo Crilley.

Por dentro do curso da RT para jornalistas africanos

Quando a RT lançou seu primeiro curso online destinado a repórteres e blogueiros africanos, a Unidade Global de Desinformação da BBC participou para conhecer mais a respeito.

“Somos um dos melhores em apuração de fatos e nunca fomos pegos publicando informações falsas”, afirmou aos estudantes o diretor-geral da RT, Alexey Nikolov.

Uma das aulas era sobre como desmascarar a desinformação.

Ele ignorou as conclusões de uma investigação conduzida pela Organização para a Proibição de Armas Químicas, que durou dois anos e confirmou que os ataques foram conduzidos pela Força Aérea Síria.

Ele chamou o evento de “a fake mais conhecida”, apesar das esmagadoras evidências da ONU e independentes, responsabilizando as forças russas.

Falando com os participantes após o curso, muitos pareceram não se perturbar com as afirmações. Alguns disseram à BBC acreditarem que a RT é uma emissora de TV internacional padrão, comparável à CNN ou à Al Jazeera.

Em dezembro de 2024, quando entrevistamos um jornalista etíope, eles repetiram as afirmações da RT, qualificando as mortes em Bucha de “evento encenado”.

E a sua imagem de perfil nas redes sociais era uma fotografia do presidente russo, Vladimir Putin.

Um jornalista de Serra Leoa reconheceu os riscos da desinformação e das fake news, mas acrescentou que todo órgão de imprensa tem seu próprio “estilo e avaliação das notícias”.

Do Oriente Médio para a América Latina

No Oriente Médio, os órgãos de imprensa estatais da Rússia, como os serviços árabes da RT e da Sputnik, ajustam sua cobertura da guerra na Faixa de Gaza para agradar o público pró-Palestina, segundo Hutchings.

Em outros lugares do mundo, a RT também procura expandir o seu alcance, incluindo a América Latina.

A RT está disponível gratuitamente em 10 países do continente, segundo seu site, incluindo a Argentina, o México e a Venezuela. A emissora também é transmitida por TV a cabo em 10 outros países.

Parte do seu sucesso se deve à sua oferta de notícias internacionais em espanhol na TV aberta, segundo o historiador e cientista político Armando Chaguaceda, pesquisador do centro de pesquisa e debates Análise Política e Governamental, dedicado à educação cívica e à promoção da cultura democrática.

Aplicativo da TV russa RT na tela de um telefone celular

Crédito, Dado Ruvic/Reuters

Legenda da foto, A TV russa RT está disponível gratuitamente em 10 países da América Latina

O YouTube baniu a RT em todo o mundo em março de 2022. Mas ela se mantém na plataforma por meio de certos canais.

O carpinteiro de 52 anos Aníbal Baigorria, da Argentina, grava reportagens de TV da RT e as carrega no seu canal no YouTube, junto com seus próprios comentários.

“Aqui em Buenos Aires, as notícias se concentram demais na cidade”, defende ele. “A RT oferece uma visão de todos os lugares da América Latina e, é claro, notícias globais.”

“Todos têm o direito de decidir se aquilo em que eles acreditam é verdade.”

A dimensão do impacto

É difícil quantificar o impacto da imprensa financiada pelo Estado russo pelo mundo.

A RT afirma que seus programas de TV estão disponíveis para mais de 900 milhões de espectadores, em mais de 100 países. E que seu conteúdo na internet atraiu 23 bilhões de visualizações em 2024.

Mas, como indica o professor de Comunicação Rasmus Kleis Nielsen, da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, “a disponibilidade não é uma medida significativa do tamanho da audiência”.

Ele defende que 900 milhões de espectadores é um número “extremamente improvável” e descreve as visualizações na internet como uma medida vaga e facilmente manipulável.

Chatterje-Doody concorda que é difícil avaliar o impacto direto da imprensa estatal russa. Mas ela indica um caso que pode sugerir um certo nível de sucesso.

Na região do Sahel, que se estende do Senegal até o Sudão, no leste da África, a Rússia teve participação militar significativa, “com resistência do público relativamente pequena”, mesmo considerando o cenário desafiador da região.

A Rússia se entrincheirou no Sahel, apoiando governos militares em países como o Máli, Burkina Faso e o Níger.

Outra narrativa que se impôs foi a justificativa russa pela invasão da Ucrânia.

A Rússia classifica, há muito tempo, a expansão da Otan para o leste e o crescimento dos laços entre a Ucrânia e a aliança como uma razão fundamental para sua invasão.

Moscou defende que esta situação representa uma “ameaça à segurança” e que a Rússia agiu em “autodefesa”.

Esta tese errônea foi amplamente derrubada no Ocidente, mas subsiste no Sul Global.

O âncora Kevin Owen apresenta uma reportagem sobre o impeachment do presidente americano Donald Trump em um programa da RT

Crédito, Misha Friedman via Getty Images

Legenda da foto, É difícil quantificar qual o impacto da imprensa russa financiada pelo Estado pelo mundo

“A ideia… é uma narrativa bem aceita, especialmente nos círculos acadêmicos, no México e na América Latina em geral”, afirma Chaguaceda, sobre o argumento referente à expansão da Otan.

Alguns líderes do Sul Global hesitam em condenar a guerra da Rússia contra a Ucrânia.

Na primeira votação da Assembleia Geral da ONU após a invasão russa, em 2022, a ampla maioria dos países condenou a guerra, mas 52 nações votaram contra as resoluções, registraram formalmente sua abstenção ou se recusaram a votar.

Entre estes países, estavam a Bolívia, Máli, Nicarágua, África do Sul e Uganda.

O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky (centro), fala à imprensa na cidade de Bucha

Crédito, RONALDO SCHEMIDT/AFP via Getty Images

Legenda da foto, Parte dos líderes do Sul Global hesitou em condenar a guerra da Rússia contra a Ucrânia

Crilley tem sua própria opinião sobre qual é o objetivo da Rússia.

Para ele, “[o Kremlin está tentando] reduzir o relativo isolamento da Rússia no cenário mundial, retratando o país como vítima da agressão ‘do Ocidente’ e defensor do Sul Global”.

O professor alerta que o risco “é que a RT e outras frentes russas de desinformação prejudiquem e explorem as fraquezas da democracia liberal, normalizando a agressão da Rússia na Ucrânia e apresentando a Rússia não como um Estado autoritário, mas como alguma espécie de potência benigna na política global”.

Questionada sobre as afirmações levantadas nesta reportagem, a RT respondeu: “De fato, estamos nos expandindo em todo o mundo.” A emissora não quis apresentar outros comentários sobre pontos específicos.

A agência Sputnik não respondeu aos pedidos de comentários enviados pela BBC até a publicação desta reportagem.

Em última análise, Hutchings acredita que todos nós devemos nos preocupar com as atividades do Estado russo, particularmente no contexto do futuro da ordem global e da democracia.

Ele acredita que o Ocidente está “desviando o olhar da bola” ao reduzir o financiamento da imprensa e “deixando o campo aberto para órgãos como Russia Today”.

“Existe muito em jogo e muito a perder… e a Rússia está ganhando terreno”, destaca o professor. “Mas a batalha não está perdida.”



Fonte.:BBC NEWS BRASIL

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