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27 de agosto de 2025

Mulheres têm sucesso no mundo do vinho apesar do machismo – 26/08/2025 – Comida

Mulheres têm sucesso no mundo do vinho apesar do machismo – 26/08/2025 – Comida

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“E por que a menina acha que pode me ajudar a escolher um vinho?”. O autor da provocação era um homem de meia-idade, cliente assíduo do restaurante Wow, em Portugal. Quem a ouviu foi a paulista de Franca Priscila Haddad, 35, então sommelière-chefe da casa. No complexo cultural dedicado aos vinhos, localizado em Vila Nova de Gaia, norte do país, ela liderava uma equipe de 12 profissionais.

“Depois disso, o homem passou a me fazer perguntas sobre cada um dos vinhos, para me testar. Mal sabia ele que eu tinha criado aquela carta e de todos os outros seis restaurantes do Wow”, conta Haddad, que já trocou de emprego e foi contratada como educadora de vinhos pelo conglomerado português Kopke Group by Escotet Family Estates.

Cenas como essa, de machismo e misoginia sem disfarce, fizeram e ainda fazem parte das trajetórias de boa parte das brasileiras que conquistaram espaços no mundo dos vinhos —mas elas continuam abrindo caminhos em várias direções, dos salões elegantes aos bastidores.

A enóloga Flávia Cavalcanti, 39, especializada em vinhos de inverno, tem na carteira de clientes as vinícolas Merum, Face Norte e Vale dos Ventos, todas em Espírito Santo do Pinhal (SP).

“A gente vira casca grossa para evitar o assédio. No início da carreira, eu só andava de calças folgadonas e camisas largas até os joelhos, para passar despercebida. Tinha medo de percorrer os vinhedos sozinha”, lembra.

Conforme ia subindo na carreira, outros problemas foram surgindo —como o desafio de chefiar homens mais velhos do que ela. “Me diziam ‘menina, faço isso há mais tempo do que você tem de nascida’. E eu respondia: mas está fazendo errado!”

Situações do tipo podem ser comuns a qualquer segmento, mas atingem outra escala no universo dos vinhos, na opinião da sommelière Analu Torres, 50, dona do wine-bar Plou, localizado na Vila Madalena, em São Paulo.

“No Brasil, as gerações mais antigas, que formalizaram o estudo do vinho, são resistentes a tudo, não só às mulheres”, acredita. “Muitas delas entram no setor por funções de serviço e levam muito tempo para conseguir se provar. Acho que ainda estamos nisso, são raras as mulheres em cargos de liderança.

Professora de francês, Torres chegou aos vinhos dando aulas para sommeliers e equipes de salão, antes de formar-se pela Associação Brasileira de Sommeliers (ABS). Em um dos restaurantes em que trabalhou, sofreu assédio de um membro da equipe e registrou a denúncia. “É um setor jurássico, cheio de preconceitos”, diz.

Para Fabrizia Zucherato, 48 anos, diretora-executiva da vinícola Guaspari desde 2013, a equidade depende de mais mulheres liderando. Formada em agronegócios, com passagem por outros setores igualmente machistas, ela chefia uma equipe 60% feminina e diz que, finalmente, se sente à vontade para assumir a própria feminilidade —e até trabalhar com os cabelos soltos.

“Um fator determinante para que eu pudesse crescer na carreira foi passar por empresas de mulheres fortes e atuantes, o que reproduzo aqui. Não precisamos ser iguais aos homens. Uma gestão feminina reconhece, por exemplo, que o equilíbrio familiar ainda depende muito da mulher”, afirma ela.

Determinação não falta à advogada Miriam Krindges, 38, sócia da vinícola familiar Sítio Rosa do Vale, em Poço das Antas (RS). Embora seus vinhos estejam à venda na rede Carrefour, ela enfrenta lutas constantes para ser respeitada.

“Se as mulheres brancas não são levadas a sério, imagine eu, uma negra. Não consigo acesso a crédito, sou esquecida pelos eventos. Muitos compradores de redes varejistas me chamam e, quando me veem, inventam desculpas para não comprar meu vinho. As verdadeiras razões nunca são ditas”, Krindges.

A saída, diz ela, foi explorar o enoturismo —e de uma forma inusitada. Em pleno Vale do Taquari, cercada pela cultura germânica, ela criou experiências turísticas de pisa da uva com rodas de samba.

Desde 2022, entre janeiro e março, turistas pagam R$ 350 para visitar o vinhedo de trator, comer quitutes típicos da região e sambar sobre as bagas. Mulheres são a maioria.

Para a sommelière Lis Cereja, proprietária da Enoteca Saint VinSaint e criadora da feira Naturebas, dedicada aos vinhos naturais, não é por acaso que os projetos mais disruptivos do setor são iniciativas femininas.

“Como ninguém tem expectativa em relação às mulheres, elas são mais livres, abertas a experimentar coisas novas, sem preconceitos. Nunca tivemos nada a perder e arriscamos mais.”

São elas também que estão movimentando o enoturismo. “No nosso wine-bar, cerca de 80% das reservas são feitas por mulheres”, diz Luciana Guimarães, proprietária da Vinícola Merum.

Já existe até um movimento chamado Vinhos por Elas em Espírito Santo do Pinhal (SP). Duas empresárias locais, Loriane Salvi e Carol Milleu, organizam encontros mensais para profissionais da área e amantes da bebida.

O objetivo não é mera diversão. “Compartilhamos informações sobre cultivo, mercado e divulgação, geramos negócios. Quem se junta a nós sempre tem algo a oferecer”, diz Loriane.

Quando foi contatada pela reportagem, a sommelière Daniela Bravin admite que pensou em declinar. Por chamada de vídeo, ao lado de Cássia Campos, sua companheira e sócia no Sede 261, ela desabafou.

“É frustrante continuar repetindo esse tema. Mulheres devem ser ouvidas para falar sobre vinhos, não sobre questões de gênero. Precisamos sair desse lugar.” Mas ela admite que a briga está longe do fim.

“O Sede 261 é uma fantástica fábrica de sommelières, sempre vai ter mulher por lá. Mas a gente não tem mesmo um segundo de paz. Tudo o que conquistamos, volta e meia ficamos a ponto de perder.”



Fonte.:Folha de São Paulo

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