Turistas que visitam o Rio de Janeiro costumam se concentrar nos cartões-postais da zona sul, como a praia de Copacabana, o Pão de Açúcar e o Cristo Redentor. Mas uma nova iniciativa da Embratur está ajudando a mudar esse roteiro. Desde o início de 2024, Madureira e Oswaldo Cruz, bairros do subúrbio da capital fluminense, fazem parte oficialmente da Rota do Samba, um circuito cultural e interativo que valoriza o afroturismo e a ancestralidade do ritmo mais tradicional do país.
O projeto integra o programa Novas Rotas, que busca expandir o turismo brasileiro para além dos destinos convencionais. Com mapas digitais, audioguias, placas bilíngues com QR codes, realidade aumentada e roteiros gratuitos aos sábados, a Rota do Samba conecta pontos históricos ligados à história da Portela, de ícones como Paulo da Portela e Candeia, e de tradições que marcaram o desenvolvimento cultural da zona norte.
Idealizada por Marquinhos de Oswaldo Cruz, cantor e compositor ligado à Portela, e com curadoria da Diáspora Black e do grupo Guiadas Urbanas, a rota propõe uma imersão no outro lado da cidade, uma parte do Rio que durante décadas ficou fora dos circuitos, apesar de seu peso histórico.
“Essa cidade recebeu muitos negros escravizados. Mas essa população foi empurrada para os morros e subúrbios. E foi ali que construiu um imenso acervo cultural. A Rota do Samba é uma forma de reconhecer e devolver esse protagonismo”, afirma Cruz.
Do trem do samba ao museu a céu aberto
A inspiração para a criação da rota veio de uma tradição que há 30 anos movimenta o subúrbio carioca: o Trem do Samba. O evento anual, sempre no primeiro sábado de dezembro, recria o trajeto de Paulo da Portela da época em que o samba ainda era criminalizado. Sambistas embarcam em trens rumo à zona norte, com rodas de samba e celebração ao Dia Nacional do Samba.
“Foi ao ver milhares de pessoas indo até Oswaldo Cruz para o Trem do Samba que surgiu a ideia da rota. O bairro merecia algo permanente, e não só um evento por ano”, diz Marcelo Freixo, presidente da Embratur, que esteve à frente da articulação institucional do projeto. “O turismo tem uma potência imensa de descentralizar a economia, redistribuir oportunidades e valorizar identidades historicamente marginalizadas.”
A rota atual conecta dez pontos emblemáticos, como a Casa do Candeia, o Bar da Tia Doca, a antiga quadra da Portela —onde, segundo moradores, Walt Disney se inspirou para criar o personagem Zé Carioca — e o Bar do Nozinho. Aos sábados, o passeio pode ser feito com guias da própria região, formados pelo projeto em parceria com plataformas como Ifriend e a consultora Karol Duarte, do Guiadas Urbanas.
Além disso, a experiência pode ser combinada com eventos tradicionais como a Feira das Yabás e a Feijoada da Família Portelense, atividades mensais que incluem culinária afro-brasileira, rodas de samba e homenagens à velha guarda.
“A ideia desde o início era transformar a região em um museu a céu aberto. A Feira das Yabás, por exemplo, tem barracas que representam famílias históricas da Serrinha, da Portela e de Oswaldo Cruz, com receitas como galinha com quiabo, bobó de camarão e feijoada da tia Vicentina”, explica Cruz.
Turismo além da zona sul
A inclusão da zona norte no circuito turístico oficial da cidade marca uma mudança simbólica na forma como o Rio é apresentado ao mundo. Cruz destaca que, durante décadas, o Cristo Redentor ficava de costas para os subúrbios. Agora, com a Rota do Samba, a cidade começa a integrar sua própria diversidade cultural.
“Estamos falando de uma região que revelou nomes como Zeca Pagodinho, Jovelina Pérola Negra e Dona Ivone Lara. É o berço da Portela e do Império Serrano, dois dos maiores patrimônios do samba. É fundamental que essa memória esteja acessível e valorizada”, diz o curador.
O impacto da rota vai além da cultura. Segundo Freixo, o aumento do fluxo turístico tem gerado movimentação no comércio local, fortalecido a autoestima dos moradores e ampliado a sensação de pertencimento. “Uma aluna da UERJ me contou que a chegada dos turistas trouxe mais segurança, visibilidade e até orgulho para o bairro. Projetos como esse criam uma economia da cultura viva: geram renda, mas também fortalecem a identidade”, afirma.
Para quem visita, a experiência é diferente do que se vive na orla carioca. O passeio permite ouvir histórias pouco conhecidas, visitar lugares que fizeram parte da formação do samba e vivenciar a cidade a partir de sua raiz popular.
“Você vai conhecer onde nasceu o pagode da Tia Doca, de onde saiu o Zeca Pagodinho para o estrelato, onde o Walt Disney tomou uma cerveja com Paulo da Portela. São histórias que não podem ficar restritas ao bairro”, completa Freixo.
A força de um outro Rio
Com cerca de 30 quilômetros de distância do centro da cidade, Oswaldo Cruz e Madureira se mostram como destinos possíveis para quem quer conhecer uma cidade mais ampla e mais conectada à história de sua população.
“A cidade partida que o Zuenir Ventura descrevia não era só entre morro e asfalto. Era entre o centro e os subúrbios. E agora essa fronteira começa a se dissolver, com o samba guiando o caminho”, diz Cruz.
Para quem estiver no Rio aos sábados, o passeio pode começar com um encontro na estação de trem de Oswaldo Cruz, seguir até a Casa do Candeia e se encerrar numa roda de samba com feijoada. É gratuito, interativo e conduzido por quem vive no bairro.
“É uma viagem ao coração do subúrbio carioca, à história da Portela, a maior campeã do carnaval. É um território com outros personagens, outras paisagens e outras memórias. É o Rio profundo e autêntico pulsando em cada esquina”, destaca Freixo.
Fonte.:Folha de S.Paulo