
Crédito, Divulgação/Polícia Civil do DF
- Author, Vitor Tavares*Vitor Tavares*
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
Policiais foram às ruas de sete Estados e do Distrito Federal na quinta-feira (4/9) em busca de um produto hoje vendido livremente pela internet, usado por pessoas em tratamentos médicos e também consumido em festas pelo Brasil: os chamados cogumelos “mágicos” .
Capitaneada pela Polícia Civil do DF, a operação Psicose teve cifras superlativas: ao menos 10 presos, 20 mandados de busca e apreensão cumpridos e R$ 30 milhões bloqueados em contas dos investigados.
Segundo o delegado Waldek Cavalcante, responsável pela operação, o grupo alvo também usava empresas do ramo alimentício para lavar dinheiro e ocultar atividades ilícitas.
A operação é mais um capítulo de uma batalha sobre a legalidade da produção e venda destes cogumelos alucinógenos.
Isso porque atualmente o principal tipo desses cogumelos, cientificamente chamado de Psilocybe cubensis, não está explicitamente entre as plantas e fungos proibidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
No Brasil, as substâncias sujeitas a controles especiais são reguladas pela Portaria 344 de 1998 e divididas em categorias e listas.
Mas, apesar de os cogumelos não estarem explicitamente nesta relação, as substâncias alucinógenas presentes neles, psilocina e a psilocibina, estão. Elas constam na chamada lista F2 de substâncias psicotrópicas, que têm uso vetado no Brasil.
Isso faz com que vendedores, consumidores e advogados argumentem que, a rigor, a venda e compra dos cogumelos não seria proibida — e, sim, a comercialização direta das substâncias extraídas dos fungos.
Mas esse não é o entendimento que a Justiça vem tendo.
Uma decisão de agosto do Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou a condenação por tráfico de um homem preso em Brasília em 2023 por vender esses cogumelos.
O relator do caso, ministro Carlos Cini Marchionatti, considerou que a presença de substâncias proscritas com finalidade alucinógena é suficiente para caracterizar o crime, independentemente da listagem específica ou não do fungo ou da pureza da substância.
A decisão do STJ também reforça que o cultivo e comercialização de qualquer produto com psicotrópicos exigem autorização legal e terapêutica específica da Anvisa, o que não é o caso das situações investigadas.
À BBC News Brasil, o delegado Waldek Cavalcante confirmou que essa decisão recente do STJ o estimulou a organizar a operação em diversas cidades, de Belém (PA) a Curitiba (PR), onde foi encontrado um grande galpão que guardava o cultivo de cogumelos.
“A partir desse caso, a gente chamou mais atenção para esse fato. Então, a gente passou a monitorar mais as redes sociais e sites que estão ofertando esse tipo de droga. A decisão do STJ fortalece nosso trabalho”, diz Cavalcante.
Mas essa história provavelmente não se encerra aí.
O advogado Fernando Vasconcelos, defensor do homem condenado, informou à BBC News Brasil que já está preparando o novo recurso para remeter o caso ao Supremo Tribunal Federal (STF), que teria a palavra final sobre o tema.
“A gente quer levar a discussão muito mais do que o simples recurso, mas para a questão social da saúde pública, que é como esse assunto é tratado em outros países que já autorizam o uso da psilocibina como medicamentos para depressão, contra vício”, diz Vasconcelos.
O caso recente

Crédito, Divulgação/Polícia Civil do DF
Em 2023, a mesma polícia do Distrito Federal prendeu em flagrante Fabio Hoff dos Santos como resultado de uma investigação policial sobre a venda de “cogumelos mágicos” pela internet.
Ele foi condenado a 1 ano e 8 meses de prisão por tráfico de drogas, porque, segundo a investigação, esses cogumelos eram comercializados explicitamente pelos seus efeitos alucinógenos.
Para a Justiça, o objetivo de Hoff não era vender o cogumelo em si, mas sim a “experiência”, a “viagem” e o “barato”.
Entre as provas de acusação, estava o próprio site do acusado, que utilizava termos como “primeira viagem”, “viagem intensa” e disponibilizava uma “calculadora mágica” para os usuários definirem a dose necessária para obter os efeitos desejados.
Fábio Hoff passou 40 dias presos pelo flagrante, quando passou a cumprir pena em regime aberto, posteriormente substituída por outras medidas restritivas, sem precisar ir ao presídio.
Após recurso da defesa ao STJ, a decisão de agosto confirmou as penas das instâncias inferiores.
Segundo o advogado Fernando Vasconcelos, seu cliente quer levar agora o caso ao STF por ser um “idealista” sobre o tema.
“Ele acredita no potencial positivo que a substância tem para as pessoas”, diz Vasconcelos.
“Se ele puder ser absolvido, melhor ainda. Mas a preocupação maior do Fábio é justamente conseguir fazer com que psilocina e a psilocibina possam ser usadas como tratamento médico.”
Provocado, o STF poderá decidir se uma pessoa pode ser ou não criminalizada pelo uso e comércio dessa mercadoria.
O advogado diz que o caso do seu cliente não se trata o uso recreativo dos cogumelos.
Ele argumenta que a “calculadora mágica” que havia no site de Fábio Hoff era uma questão de segurança, já que uma dose errada pode levar até à morte.
“Assim como o médico quando te prescreve um remédio, ele bota a quantidade. O cogumelo demanda a mesma cautela. E foi exatamente isso que ele fez”, argumenta Vasconcelos, que compara a situação com a da maconha medicinal.
No fim de 2024, o STJ validou cultivo da cannabis por empresas com fins terpêuticos. O prazo para regulamentação da Anvisa termina em setembro, enquanto tramita no Congresso várias propostas que tratam do assunto.
Além disso, recentemente, em outra decisão sobre a cannabis, o STF definiu 40 gramas de maconha como critério para diferenciar usuário de traficante e que o porte desta quantidade não é crime.

Crédito, Jahi Chikwendiu/The Washington Post via Getty Images)
Tráfico x legalidade
O próprio caso da maconha é usado por quem defende a comercialização de cogumelos e quem avança contra ela.
Para o delegado Waldek Cavalcante, dizer que o cogumelo é liberado é a mesma coisa de dizer que a venda e cultivo de “maconha são liberados” — o que não é o caso.
“Se a gente tivesse a cannabis e tirasse o THC [o tetrahidrocanabinol, principal componente psicoativo)], realmente não teria problema nenhum. Mas não tem como isso acontecer, a substância está presente ali de todo jeito.”
Mas o advogado Emilio Figueiredo, conhecido por sua atuação pela reforma da política de drogas no Brasil, o caso do cogumelo é diferente.
No caso da maconha, explica, tanto a cannabis sativa, a planta, quanto o THC, a substância, estão no rol de produtos proibidos. O cogumelo em si, não está.
À BBC News Brasil em reportagem de 2023, a professora de Direito Penal Econômico da Fundação Getulio Vargas (FGV) Fernanda Vilares explicou que as normas atuais podem ser interpretadas de formas diversas devido à natureza pouco específica das leis — especialmente pelo consumo e pesquisa com cogumelos serem um fenômeno novo.
Mas Figueiredo reconhece que o novo entendimento do STJ faz com que o argumento da legalidade da prática “não se sustente mais”.
“Não há uma proibição, mas teve uma decisão de tribunal superior dizendo que é tráfico de drogas. Isso é muito ruim tanto quem vende o cogumelo quanto para quem o usa. E muita gente precisa do cogumelo como remédio”, diz o advogado.
Pesquisas recentes sobre os benefícios do uso dos cogumelos, em especial para o tratamento de doenças mentais, têm atraído basante atenção para o tema em vários países.
No Reino Unido, algumas pesquisas indicam que tais propriedades podem aplacar sintomas de ansiedade, depressão e estresse pós-traumático.
Outros pesquisadores, porém, dizem que a evidência empírica quanto à eficácia e os mecanismos de funcionamento da terapia psicodélica está longe de ser clara.
Mas, para Figueiredo, mesmo que o uso seja para ter uma experiência psicodélica recreativa, o produto não deveria ser considerado proibido.
“As pessoas têm a liberdade de alcançar estados não ordinários de consciência. Se você respirar de determinada forma, você pode alcança uma experiência não ordinária, e isso não faz de você um criminoso nem quem ensina os exercícios respiratórios”, interpreta o advogado.
Os efeitos desses cogumelos são diversos, mas em geral podem alterar a subjetividade e os sentidos, assim como a percepção de espaço e tempo, e causar vertigem, relaxamento, euforia e distúrbios visuais.
Embora muitas pesquisas ainda estejam em andamento, estudos sugerem que essas substâncias afetam principalmente os receptores 5-HT2A no cérebro, que normalmente são ativados pelo neurotransmissor (mensageiro químico) serotonina.
Ha ainda outra brecha jurídica usada pelos advogados, especificamente sobre a classificação do cogumelo. A legislação brasileira proíbe expressamente “plantas” e “vegetais” dos quais se pode extrair droga.
A defesa de Fábio Hoff tentou explorar essa terminologia no STJ. A linha de raciocínio foi que, como a lei se refere a “plantas” e “vegetais”, e os cogumelos são biologicamente classificados como fungos (pertencentes a um reino distinto do Reino Plantae), a norma penal não poderia ser aplicada a eles.
Mas, na avaliação do delegado Waldek Cavalcante, não existe mais lacuna jurídica, apesar dos argumentos dos defensores.
“Está proibido, na primeira instância, segunda instância, no STJ. Os argumentos (das defesas) são totalmente falhos”, diz Cavalcante.
O delegado diz que há casos de mortes por doses exageradas e que hoje esses cogumelos têm substituídos o LSD (dietilamida do ácido lisérgico) em festas pelo Brasil.
O advogado Fernando Vasconcelos avalia que o tema é tratado com muito preconceito, justamente pela conexão com festas e a turma mais “hippie”. Mas ele diz esperar uma discussão mais ampla na sociedade quando o caso chegar ao STF.
*Com reportagem de Julia Braun, da BBC News Brasil em Londres
Fonte.:BBC NEWS BRASIL