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Um jovem britânico acordou de um coma sem saber o próprio nome, sem memória alguma e reconhecendo apenas uma única pessoa: seu irmão gêmeo.
Com ajuda de informações fornecidas por esse irmão em que confiava, ele reconstruiu suas memórias e as relações com as pessoas que fizeram parte de sua vida.
Mas mais de uma década depois, ele descobriu que o passado idílico reconstruído com essas informações era totalmente falso, que houve um passado terrível que a família tentou manter escondido.

Quando o inglês Alex Lewis tinha 18 anos, ele foi gravemente ferido em um acidente de moto.
“Eu estava andando de carro quando acabou a gasolina. Aí peguei uma carona com uma moto. Eu estava na garupa quando a moto caiu, em uma esquina. A moto explodiu, pegou fogo e eu fui levado às pressas ao hospital”, contou ele em entrevista ao programa Outlook, da BBC.
“Entrei em coma, com vários ferimentos na cabeça. Os médicos disseram a meus pais e minha família que as chances de eu sair do coma eram bem pequenas. Mas meu irmão gêmeo, Marcus, disse que podia sentir que eu estava saindo do coma. Ele ficava ao lado da minha cama, dia após dia, falando comigo, tocando músicas… Até o dia em que, de repente, eu acordei, olhei pra ele e disse: ‘Olá, Marcus’.”
“Havia uma senhora no quarto, ela ficou histérica nesse momento, correndo ao lado da cama e chorando. E eu disse ao meu irmão: ‘Quem é ela?’. E ele disse, ‘essa é a mamãe’. Eu simplesmente não sabia quem ela era. Na verdade, eu nem sabia meu próprio nome. Eu só sabia que aquele cara no quarto era meu irmão gêmeo e que o nome dele era Marcus.”
Quando acordou do coma, em agosto de 1982, Alex sabia mais sobre o irmão do que sobre si mesmo. Todas as suas outras memórias haviam sumido. Os médicos disseram que perder a memória após sofrer ferimentos graves na cabeça e acordar de um coma é uma coisa comum. Mas eles ficaram perplexos com o fato de Alex ter resguardado na memória um único fator, que era Marcus, o irmão gêmeo.
“É por isso que ficaram tão interessados no caso, não entendiam essa ligação entre gêmeos. Acho que vários gêmeos idênticos na verdade não precisam nem dizer muito um ao outro, porque eles sabem o que cada um está pensando. Eles simplesmente se entendem”, disse Alex.
Criança no corpo de adulto
Alex tinha 18 anos mas se sentia como uma criança no corpo de um adulto, porque tinha dificuldades para entender o mundo à sua volta. E, assim como uma criança, ele teve que reaprender coisas básicas, como amarrar os sapatos.
E Marcus se encarregou de ajudá-lo e a preencher as lacunas sobre seu passado, como também contou ao programa Outlook, da BBC.
“Minha mãe se recusava a acreditar que ele havia perdido a memória, então, na verdade, isso dependia de mim”, disse Marcus. “Eu tive que mostrar a ele onde morávamos. ‘Essa é a cozinha. Esse é o banheiro. Esse é o nosso quarto. Esta é a sua escova de dentes. Esses são seus sapatos’. Literalmente do zero.”
“O Alex me perguntava sobre nossos amigos e coisas sobre nossa mãe e nosso pai. Ele queria saber o que fizemos nas férias, esse tipo de coisa. E eu dizia que éramos uma família muito normal, que passava as férias na França. Mostrava uma foto nossa na praia. Ele via essa foto e dizia, ok, isso é um ‘feriado em família’. Ele não quis os detalhes, só queria saber para onde nós íamos, que carro a gente tinha, esse tipo de coisa.”
Ele passou vários meses no hospital e foi conhecendo as pessoas aos poucos. Quando voltou para a casa dos pais, aprendeu que ele e Marcus eram filhos do primeiro marido da mãe, John Lewis, que morreu em um acidente de carro três semanas após o nascimento dos gêmeos. A mãe, Jill, teve outros dois filhos, Oliver e Amanda, com o segundo marido, Jack Dudley. Alex agora estava morando com essas pessoas, se acostumando com elas, e recompondo sua vida com a preciosa ajuda de Marcus.
“Ele me contou sobre minha vida, sobre minha família. Ele me dizia, esse é nosso pai, essa é nossa mãe, nosso irmão, nossa irmã. E eu acreditava em tudo o que ele dizia. Ele me apresentou à minha namorada, que pra mim era uma pessoa que tinha acabado de conhecer. Me disse que eu tinha um emprego, que eu já não morava na casa dos meus pais.”
Cada dia era dia de criar novas memórias ou aprender algo sobre o passado através das informações do irmão gêmeo. Marcus também ajudou a integrar Alex de volta aos círculos sociais. Os irmãos desenvolveram uma técnica para não terem de ficar repetindo o tempo todo o que tinha acontecido com Alex.
“Quando éramos convidados para um jantar, por exemplo, a gente parava do lado de fora da casa e eu fazia uma sinopse sobre as pessoas que iríamos visitar. Quem eram eles, qual é a ligação deles conosco, há quanto Alex os conhecia. Então ele entrava, cumprimentava as pessoas e se sentava fingindo estar tudo bem e que ele conhecia todo mundo. Ele só queria ser um cara normal de 18 anos, não queria ter essa pecha de ter perdido de ter perdido a memória e ver as pessoas tratando ele de uma maneira diferente”, relatou Marcus.
Alex começou a tocar sua nova vida. Reaprendeu a dirigir, conseguiu um emprego e estava se relacionando com a família.
“A pessoa com quem eu tive mais dificuldade de me aproximar foi minha mãe”, explicou Alex. “Levei muito tempo para aceitar que ela era minha mãe. Por alguma razão, eu sabia que não conseguia me conectar 100% com ela. Eu também tentei manter o relacionamento com minha namorada, mas não deu certo, porque eu era agora uma pessoa diferente, não conseguia entender a relação com ela.”

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O sinistro segredo do passado
Não foi fácil reconstruir as relações familiares — sem ter memória alguma das pessoas na casa.
“Meu padrasto era muito mais velho”, contou Alex. “Fomos criados de uma maneira muito vitoriana. Você se levantava quando ele entrava na sala e chamava ele de ‘senhor’. Você não entrava na parte dele da casa a menos que fosse convidado ou convocado. Você só falava quando recebia permissão. Mas isso acabou sendo normal pra mim. E eu acho que qualquer pessoa em qualquer casa, seja qual for a família, vai achar que esse tipo de comportamento é o normal.”
Marcus descreveu Jill, a mãe deles, como “uma mulher alta, de um metro e oitenta de altura. Falava alto, era bem expansiva. Era muito bonita. As pessoas se sentiam atraídas por ela porque ela era uma personagem muito extrovertida. Sempre que você fazia uma festa, ela era o centro das atenções na sala.”
Os anos foram passando. Em 1990, Jack, o padrasto, morreu, Cinco anos depois, foi a vez da mãe, Jill. Isso foi particularmente difícil para Alex, que, apesar de nem ter reconhecido a mãe em um primeiro momento, havia se aproximado dela.
“Foi difícil. Eu tinha 18 anos quando a conheci e 30 quando ela morreu. Eu gostava muito dela. Quando ela morreu, eu chorei na cama. Estávamos todos lá em casa quando ela se foi. E foi só nesse momento que percebi que ninguém mais estava chorando ou se incomodando que ela tinha acabado de morrer. Foi quando comecei a questionar que algo aqui não estava certo”, revelou Alex.
A desconfiança dele aumentou ainda mais quando ele e Marcus começaram a vasculhar as coisas da mãe, que era acumuladora compulsiva e tinha guardado vários mementos e tralhas no sótão e no quarto dela.
“Começamos a encontrar coisas estranhas, como uma série de presentes dados para nós e que tinham sido empilhados no sótão. Havia vale-presentes e dinheiro, de tios, tias, padrinhos, que nunca tinham sido dados pra gente. E no quarto dela, dentro de um guarda-roupas cheio de vestidos e acessórios, estava um pequeno armário. Dentro de uma gaveta achamos uma foto com Alex e eu, com cerca de dez anos de idade, completamente nus e com as cabeças cortadas. Ela cortou as cabeças da fotografia. Eram apenas nossos corpos sem nossas cabeças na fotografia.”
“Fiquei horrorizado porque, quero dizer, ninguém pega uma tesoura e corta. Não foi uma coisa acidental. E por que ela precisava de uma foto nossa nua em uma gaveta secreta? E então eu comecei a pensar. Os presentes não estão certos, e essa foto nua não está certa. Essa mulher era mais complicada do que eu tinha pensado até agora”, disse Alex.
Apesar de estarem próximos, os irmãos não falaram sobre o que haviam encontrado. Além disso, Alex estranhava que os irmãos, Marcus e Oliver, faziam terapia.
“Então eu pensei, já que todo mundo tá fazendo terapia, vou fazer também”, afirmou Alex. “Talvez eu descubra algo importante sobre mim mesmo. E, pela primeira vez, achei que poderia existir alguma coisa na nossa história que não tinha sido contada para mim.”
“Fui fazer terapia com a mesma psicoterapeuta dos meus irmãos, deliberadamente. Ela não podia revelar nada sobre as sessões com meus irmãos, isso era confidencial. Mas em uma das sessões, ela começou a fazer perguntas que abriram alguma coisa em mim. Eu comecei a chorar, sem saber direito por quê. E ela apenas disse que eu tinha que conversar com meus irmãos: ‘Você precisa ir e perguntar a verdade a eles’.”
E foi o que Alex fez. “O Marcus estava na cozinha, eu cheguei e disse, de uma forma muito direta, que achava que tínhamos sido abusados sexualmente por nossa mãe. Ele estava parado, segurando uma xícara de chá. Ele ficou branco como um lençol e deixou a xícara cair no chão. Ele apenas acenou com a cabeça. Apenas confirmou o que eu disse e foi embora”, .
E assim, a verdade veio à tona. A mãe, Jill Dudley, abusava sexualmente dos filhos em sua própria cama, e ainda permitia que as crianças fossem levadas para passar a noite com homens que ela conhecia, e que as estupravam, aparentemente sem conhecimento de Jack, o marido de Jill.
Alex continuava sem se lembrar desses acontecimentos, mas o efeito das revelações não podia ser mais profundo. Ele teve que reconstruir seu passado pela segunda vez. Porque o primeiro passado que construiu, o da infância idílica, era falso. Foi uma fantasia criada pelo irmão gêmeo, Marcus. Uma fantasia que durou 14 anos e se desfez em um instante, naquela conversa na cozinha.
“Foi um momento que eu nunca vou esquecer, porque eu estava vivendo essa vida falsa, contando histórias falsas para Alex e tornando nossa ‘normal entre aspas’, sem qualquer vestígio de que fomos abusados por nossa mãe ou de que tivemos uma infância difícil”, explicou Marcus. “Por que eu daria a um garoto vulnerável de 18 anos informações que seriam tão difíceis de assimilar, quando eu podia dar a ele algo que fosse feliz e bacana?”
“Foi um processo lento, não começou no primeiro dia. Começou quando as perguntas de Alex ficaram mais complicadas. Então, tive que fazer uma escolha consciente de mentir, de inventar, de dizer que passávamos férias em família todos os anos, onde nunca passamos. Isso foi ficando cada vez mais intenso, até um ponto em que não dava para voltar atrás.”
“Eu tinha duas opções: ou eu dizia, ‘Alex, eu tenho algo muito importante para te dizer, e vamos ter que lidar com isso’. Ou eu dava a ele essa mentira e libertava ele do passado de abuso infantil. E eu decidi fazer isso. Mas eu tive que viver essa vida. Eu tive que ir às festas de aniversário da minha mãe, sorrir e fazer o papel de que estava tudo bem, para que ele (Alex) assimilasse essa narrativa.”
“Foi como apertar o botão de delete, de apagar. Eu tirei tudo isso dele, criei uma nova realidade para ele. E passei anos e anos fazendo isso. E eu contei a história falsa por tanto tempo, que eu mesmo comecei a acreditar nela. Ou seja, eu estava ajudando ele e me ajudando também. E, de repente, em um segundo, quando deixei cair minha xícara de chá na cozinha, tudo voltou, tudo se desfez. E Alex finalmente soube que boa parte do que eu tinha dito a ele, era mentira”, contou Marcus.

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Alex ficou sabendo que os abusos só pararam quando Marcus passou a resistir e lutar contra eles, aos 14 anos. O irmão mais novo, entretanto, continuou sendo vítima de abusos. Todas essas informações vieram aos poucos. Não foi fácil lidar com elas.
“Foi devastador. Não tinha lembrança alguma disso”, disse Alex. “Acho que quando eu perdi a memória eu perdi também meus sentimentos, por todos esses anos. Mas essa revelação sobre meu passado acabou abrindo uma porteira e pela primeira vez, desde o acidente, eu entrei em um turbilhão de emoções. Eu me senti péssimo com a coisa toda. E por ter vivido na casa dos meus pais, depois do acidente, sem saber de tudo isso.”
“Muitas pessoas me disseram: ‘mas você não ficou furioso com seu irmão por mentir para você?’. E eu respondia, ‘não, de jeito nenhum’. Foi uma coisa muito difícil pra ele, mas foi uma coisa maravilhosa. Ele quis me proteger de uma infância horrível. Acho que ele pensou que eu nunca descobriria. E acho que se tivessem me dito tudo isso quando acordei do coma, não teria sido mentalmente capaz de lidar com isso. Mas quando descobri isso mais tarde na vida, pelo menos eu tinha a capacidade de buscar ajuda.”
“Todos nós, eu e meus irmãos, estivemos nessa longa jornada fazendo terapia e lidando com esse passado. Acho que nós nos tornamos pessoas muito mais fortes, todos trabalhamos muito para falar sobre isso e saímos disso como pessoas muito melhores.”
“Eu trabalhei muito com instituições de caridade dedicadas a vítimas abuso sexual e outras coisas, e é incrível a quantidade de pessoas que guardam esse abuso para si, que não contam a ninguém o que aconteceu com elas. Só quando estão na faixa dos 30 e 40 anos é que começam a falar sobre isso.”
“Acho que tive a vantagem, de uma forma estranha, de ter sofrido um acidente, entrar em coma e perder minha memória. Isso me ajudou a manter minha saúde mental. Não precisei lidar com isso da mesma maneira que meus irmãos. Emocionalmente, sim, tive que lidar com isso, porque até hoje ainda não consigo acreditar direito que foi isso mesmo que aconteceu.”
Alex e Marcus têm seus próprios filhos agora, dois cada um, das mesmas idades — e estão construindo memórias novas e, talvez, mais felizes. Em 2013, Alex e Marcus Lewis lançaram uma autobiografia, chamada Tell me Who I Am (Diga Quem Sou), coescrita por Joanna Hodgkin, e que serviu de base para um documentário de mesmo nome lançado pelo Netflix em 2019.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL