A liberação do uso da ozonioterapia em condições específicas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) levantou debates sobre as evidências que suportam a técnica. Há anos, ela é criticada justamente por sua falta de lastro científico, e era considerada experimental na medicina.
Em 2023, o presidente Lula já havia sancionado uma lei que liberava o uso de forma mais ampla, decisão muito criticada na época. Agora, a entidade que regula a prática médica autoriza os profissionais da categoria a oferecerem a terapia contra alguns tipos de feridas e dores.
Agora, o gás pode ser utilizado diretamente na pele, para tratar lesões cutâneas de difícil cicatrização, ou via injeção, contra a osteoartrite de joelho e a dor lombar provocada pela hérnia de disco.
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A visão dos dermatologistas
A reportagem conversou com representantes das sociedades médicas de especialidades envolvidas no tratamento destas condições. Segundo as fontes ouvidas, a dermatologia é a área da medicina onde é mais plausível o uso do gás.
“Houve um exagero, uma promoção generelizada do ozônio para muitas aplicações que não são sérias, até pela via retal. Obviamente, isso é absurdo, mas na dermatologia temos publicações com resultados interessantes para feridas superficiais”, comenta Omar Lupi, representante da Academia Nacional de Medicina (ANM) e presidente do Colégio Ibero Latino-americano de Dermatologia.
Segundo ele, o estado atual das pesquisas permitem dar o benefício da dúvida enquanto os estudos continuam. “Os poucos resultados positivos que temos até agora justificam isso, mas precisamos de pesquisas sérias e bem controladas para termos uma noção mais clara do potencial pleno”, comenta Lupi.
Ou seja, há alguns indícios animadores, mas… “A maioria dos estudos sobre úlcera cutânea e lesões de pé diabético apresentam alto risco de viés, amostras pequenas e metodologia inadequada, o que limita a confiabilidade dos achados e impede conclusões definitivas sobre benefícios”, diz o dermatologista Carlos Eduardo Fonseca Parenti, Dermatologista e Membro da Sociedade Brasileira de Dermatologia – Regional São Paulo (SBD-RESP).
Ele alerta ainda que, no contexto de outras feridas, a literatura é “ainda mais escassa e inconclusiva“. E que, embora o ozônio tenha efeito de limpeza e oxigenação local, não há comprovação de superioridade em relação a outros tratamentos. “Os potenciais riscos, como a indução de respostas inflamatórias, também devem ser considerados”, completa.
Entre os lados negativos, há o perigo de estimular o desenvolvimento de um câncer de pele que esteja em seus estágios iniciais. O especialista finaliza: “a aprovação do uso pelo CFM não se fundamenta em dados robustos de eficácia e segurança, e a adoção dessa prática deve ser vista com cautela até que estudos de alta qualidade comprovem benefícios clínicos relevantes e sustentáveis“.
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A opinião dos especialistas em dor
A Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia (SBOT), uma das especialidades que trata dores no joelho e nas costas, declarou que não foi procurada pelo CFM para a elaboração do parecer e que está analisando as evidências para emitir um posicionamento.
Já o médico Carlos Marcelo de Barros, presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED), afirma que há benefícios claros demonstrados na literatura para a aplicação contra o incômodo na lombar. “Ensaios clínicos randomizados e meta-análises envolvendo milhares de pacientes mostram que a aplicação de ozônio proporciona alívio significativo da dor e melhora funcional“, comenta.
Para o joelho, a situação seria semelhante à da dermatologia. “Os resultados também são promissores, mas ainda precisamos de estudos mais consistentes e de maior qualidade metodológica para confirmar esses achados”, emenda.
Ele conclui: “Vejo a decisão como um avanço importante, que reconhece o potencial terapêutico do ozônio, mas ao mesmo tempo estabelece limites claros, evitando exageros ou indicações sem base científica, o que ajuda a proteger o paciente”.
A Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR), por meio de sua comissão de osteoartrite, conduziu sua própria revisão sistemática com meta-análise (considerado o padrão ouro de evidências sobre um tratamento de saúde, pois permite analisar diversos ensaios clínicos).
“Constatamos que há dados positivos, mas de estudos com problemas de execução, que não permitem dizer que o ozônio pode ser usado para tratar para osteoatrite de joelho”, comenta Francisco Airton Castro da Rocha, coordenador da comissão científica de Osteoartrite da Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR).
O que diz a ciência
Como justificativa para a liberação da ozonioterapia, o CFM cita estudos favoráveis a estas aplicações, mas entre eles, por exemplo, está uma revisão inexistente sobre o uso contra dores da osteoartrite.
O trabalho não consta nas referências do documento e nem na base de dados da Cochrane, entidade referência em pesquisa que seria responsável pelo levantamento.
Em relação às costas, o fisioterapeuta Leonardo Costa, que tem doutorado em dor lombar e faz parte do grupo de estudos da própria Cochrane sobre o assunto, analisou as evidências científicas usadas como justificativas pela entidade.
“Existem revisões sistemáticas sim, publicadas em 2024, mas elas são escandalosamente ruins, mal feitas e otimistas demais, publicadas em revistas de terceira linha de qualidade de evidência. Em suma, é uma evidência frágil e lotada de incerteza“, comenta Costa, que coordena o Instituto de Prática Baseada em Evidências.
Como exemplo de problemas, ele cita que ambas as revisões comparam o antes e depois do ozônio, e não o resultado frente a um placebo ou grupo controle. “Outra questão é que, na grande maioria dos casos, a causa da dor lombar não é a hérnia de disco, que está presente na maioria da população acima dos 35 anos de forma assintomática. Então é preciso ter muita certeza sobre a origem da dor, o que não fica claro nos ensaios”, aponta.
O especialista comenta ainda a falta de pesquisas com resultados positivos em publicações renomadas, como costuma acontecer em tratamentos que entram na prática médica. “É um estudo simples de ser feito, que a própria indústria poderia financiar. Resta saber se topariam fazer uma investigação séria e independente”, encerra.
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Fonte.:Saúde Abril