A Primeira Turma do STF deve concluir nesta semana o julgamento do primeiro núcleo da trama golpista, formado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e sete de seus aliados. Tudo indica que serão condenados a mais de 30 anos de prisão.
A inelegibilidade decretada pelo Tribunal Superior Eleitoral em 2023 já havia praticamente excluído Bolsonaro do pleito de 2026, salvo uma improvável reversão da pena —hipótese ainda acalentada por seus seguidores no Congresso. A condenação iminente no STF, contudo, se confirmada, agrava a situação, afastando de vez qualquer possibilidade de retorno relevante ao cenário político.
Nesse vácuo, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, surge como potencial herdeiro do espólio do, talvez, duplamente inelegível. Em 5 de setembro, celebrou a concessão de rodovias em São Paulo e exaltou a iniciativa privada, reafirmando a centralidade da agenda de privatizações em sua gestão.
Esse discurso remete aos anos 1980, quando teve início a primeira onda de reformas administrativas, no bojo da crise do capitalismo após os “anos gloriosos” do pós-guerra. Reino Unido e Estados Unidos, sob Thatcher (1979-1990) e Reagan (1981-1989), foram pioneiros em experiências de redução do papel estatal, que logo seriam replicadas em outros países desenvolvidos.
Nos anos 1990, o receituário alcançou a América Latina, impulsionado pelos Estados Unidos e organismos internacionais.
O Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 1997, intitulado “O Estado num mundo em transformação”, recomendava que as reformas administrativas na região se dedicassem a privatizações, descentralização, enxugamento dos quadros e flexibilização na contratação de servidores.
Esse documento ecoava os princípios mais amplos do Consenso de Washington, que também defendia austeridade fiscal e redução do gasto público. Mantendo o núcleo duro inicial e se reorganizando em torno elementos ou narrativas periféricas, as reformas administrativas e fiscais proliferaram nas décadas seguintes, deixando legados bem diferente dos previstos.
Folha Mercado
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Interessante perceber que o relatório de 1997, ao recomendar uma completa alteração do papel assumido pelo Estado no pós-guerra, ressaltava a dificuldade dessa redefinição, uma vez que o “terreno em que se assenta está sempre mudando”.
Hoje resta evidente que o terreno mudou —para pior. As reformas legaram desigualdades, concentração de renda e poder, precarização e enfraquecimento da ação pública. Enquanto a Europa, aprendendo com os erros, reestatiza serviços essenciais, o Brasil ainda insiste no mantra da privatização.
Num mundo de múltiplas crises, precisamos de um Estado forte e inteligente. Isso exige, sim, revisar privilégios imorais de segmentos do alto funcionalismo do Judiciário, Executivo e Legislativo.
Mas, sobretudo, requer valorizar o servidor que está na ponta —professores, médicos, enfermeiros, policiais, assistentes sociais, atendentes— os chamados “burocratas de nível de rua”, na expressão de Michael Lipsky (1980). São eles que garantem a efetividade da ação governamental.
É deles que precisamos falar ao pensar uma reforma administrativa à altura dos desafios do século 21.
Fonte.:Folha de S.Paulo