
Crédito, Dan Agostini/Getty Images
Um dos principais especialistas nas ações do PCC, Fontes ganhou notoriedade durante sua atuação no Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), onde investigava a facção desde o início dos anos 2000.
Atualmente, Fontes era secretário de Administração da Prefeitura de Praia Grande, mas como delegado-geral, foi responsável, inclusive, pela detenção de Marcos Willians Herbas Camacho, conhecido como Marcola, um dos líderes da facção.
Assim como Fontes, o promotor do Ministério Público de São Paulo Lincoln Gakiya já sofreu ameaças da facção. Ambos estavam à frente da operação de transferência das lideranças do PCC, dentre elas, Marcola, para presídios federais, no início de 2019, o que despertou a fúria dos criminosos que sentenciaram algumas autoridades.
“O doutor Ruy sabia que existiam ordens do PCC para matá-lo”, afirmou Gakiya à BBC News Brasil nesta quarta-feira (17/09). “Eu mesmo passei a ele duas ou três situações oriundas da Penitenciária de Presidente Venceslau [que já abrigou as maiores lideranças do PCC] para matá-lo. Ele tinha conhecimento.”
Em uma entrevista à CBN para a jornalista Aline Ribeiro, Fontes disse que “nunca” foi ameaçado.
“Não são ameaças”, explicou Gakiya. “São ordens para matar”.
“Em 2010, uma dessas ações seriam levadas a cabo e nós captamos isso em uma interceptação telefônica”, conta o promotor. “Os criminosos estavam indo para o DP [delegacia de polícia] para matar o dr. Ruy. E nós conseguimos prendê-los na porta da delegacia.”
O risco, conta Gakiya, nunca deixou de existir.
“Ano passado eu havia comunicado a ele que as ordens ainda estavam de pé. O PCC ainda estaria cobrando a morte de algumas autoridades, a minha também”, afirmou. “Ele me disse que tinha conhecimento, mas, como estava aposentado, não tinha direito à escolta. Não sei se ele solicitou apoio ou não de escolta. Pelo que sei, não.”
Para Gakiya, que anda com uma escolta de mais de uma dezena de policiais, essa é uma questão crucial. No fim de 2026, ele atinge a idade para se aposentar. “Mas sem garantia de que terei segurança durante a aposentadoria, não pretendo sair do MP”, afirmou.
Em meio à discussão, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), afirmou ao blog da jornalista Andréia Sadi na terça-feira, que estaria avaliando a proteção automática a autoridades que investigam o crime organizado que deixarem o cargo.
Procurada para confirmar e detalhar esse plano, a assessoria de imprensa do governador não respondeu até o fechamento desta reportagem.
Após o assassinato de Fontes, Gakiya contou que reforçou sua segurança. “A minha segurança foi mais reforçada ainda, porque isso pode ser um indicativo de que eles podem colocar em prática as ordens para me matar.”
Confira a seguir os principais trechos da entrevista com Gakiya, realizada na quinta-feira (11/09), antes da morte de Fontes.
BBC News Brasil – O senhor está há 20 anos investigando o PCC, tendo sido um dos responsáveis por isolar lideranças em presídios federais em 2018. Mas a facção seguiu crescendo. Olhando para trás, o senhor acha que isso, de alguma maneira, fez diferença?
Lincoln Gakiya – O que pude compreender nesses 20 anos, mas sobretudo nos primeiros dez anos investigando o PCC, foi, primeiro, que havia realmente a necessidade de isolamento das lideranças. Quando peguei esses casos para investigar, foi no primeiro ataque de 2006, tínhamos, pelo menos aqui no Ministério Público, muito pouca informação sobre o funcionamento interno do PCC.
Claro que a gente já sabia mais ou menos que o Marcola era líder e tal, mas não sabíamos quais eram as fontes de arrecadação, quais eram os setores, como que o PCC se autogeria, quais eram os objetivos. E, principalmente, quais eram os líderes que estavam em cada um desses setores.
O início da minha investigação foi justamente para fazer esse mapeamento interno do funcionamento do PCC, para que a gente pudesse entender que realmente o tráfico de drogas era um carro chefe do PCC, mas que tinha outras fontes também de arrecadação na época, como rifas, a mensalidade, algumas ajudas. A gente precisava ter esse conhecimento para que nós pudéssemos tentar conter a expansão do PCC ou, pelo menos, saber em quais setores a gente tinha que avançar [as investigações].
Nós tivemos, num primeiro período, muitas prisões e apreensões. Contabilizo mais de 200 prisões relativas a investigações que atuei. As investigações começaram em 2005 e não pararam até hoje. Mas a gente chegou num ponto em que verificamos que esses líderes eram presos, levados para a penitenciária de Presidente Venceslau (SP), onde ficavam, teoricamente, isolados, mas a gente realmente não conseguia conter o avanço [da facção].
Percebemos que, embora o Estado de São Paulo tivesse o regime disciplinar diferenciado, o RDD [um regime mais severo], que já tinha sido aplicado ao Marcola e a outros líderes, mesmo assim, isolados, sem visita íntima, sem contato via telefone, tendo contato apenas com advogados e familiares, mesmo assim, eles ainda continuavam a manter o ciclo de poder.
Primeiro, porque a gente não conseguia mandar toda a liderança para o RDD. Em segundo lugar, os líderes ficavam sempre na mesma penitenciária, continuando com os negócios do PCC. Ou seja, o isolamento físico não estava sendo suficiente. Precisávamos de um isolamento geográfico para que esses líderes ficassem distantes das suas bases.
Imagina que o mesmo advogado que atendia o Marcola, saía dali para o presídio de Presidente Venceslau, atendia outro líder e passava ordens. E voltava no dia seguinte, porque a gente não pode impedir o acesso do preso ao advogado. A gente não conseguia quebrar essa cadeia de comando.
Portanto, já desde 2006, eu e o Ministério Público entendemos que era necessário esse isolamento territorial. E houve muita resistência por parte do Estado de São Paulo em aceitar essas remoções.
Até que, em 2018, descobrimos que havia um plano para resgatar não só o Marcola, mas outras as lideranças do PCC.
Levei isso ao conhecimento do governo já com a sugestão de que se fizesse a remoção, não só de um ou dois líderes, mas de 21 líderes do PCC para o sistema penitenciário federal. Era praticamente o primeiro, o segundo e o terceiro escalão. O pedido foi feito em novembro de 2018 e acabou sendo deferido em fevereiro de 2019.
Isso foi algo que acabou marcando a minha carreira, inclusive do ponto de vista de segurança, porque as ameaças com as quais eu já convivia aumentaram muito.
Hoje tenho uma segurança praticamente comparada à da Presidência da República.
BBC News Brasil – Qual foi o momento mais difícil que o senhor viveu?
Gakiya – Em 2019, após as remoções, virou uma questão de honra para o PCC [me matar]. Eu deveria ser morto para que outros promotores, juízes ou policiais, não tivessem a mesma atitude que eu. É um decreto de morte que não tem volta.
Eu pedi a remoção das lideranças no final de novembro e isso acabou vazando para a imprensa. E no sábado seguinte foi apreendido na sala das visitas da penitenciária, com a esposa de um companheiro do Marcola, algumas cartas criptografadas. Elas estavam codificadas, mas continham ali ordens para me matar, detalhes da minha escolta e que eu deveria ser morto. Isso aí era um ‘salve’ [ordem do PCC] e quem não cumprisse seria responsabilizado.
Essa primeira carta foi o que mais me marcou. Reuni minha esposa e meus filhos para dizer que havia toda aquela situação, que a nossa vida iria mudar, porque até o nível de escolta que passei a ter era muito diferente, inclusive na porta da minha casa, em todos os lugares. Isso virou a minha vida de cabeça para baixo.
Foi o momento mais difícil. Eu convivo com isso já há quase oito anos. Não tenho mais quase vida social. Restringi muito as saídas, o que eu costumava fazer, meu lazer, enfim, eu acabei abdicando de fazer, até para não me expôr mais em risco. Essa é uma das condições para manter a escolta: não se colocar, voluntariamente, em risco, o que implica não ir em restaurantes ou bares, lugares abertos, shows, correr no parque, que era uma coisa que eu fazia.
E às vezes também, quando você vai para algum lugar, a sua própria presença intimida as pessoas. Eu ando com dez, doze policiais armados com fuzil. Então a gente chega em um restaurante e as pessoas se levantam e saem com medo. Ou comentam, acham um absurdo.

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BBC News Brasil – Apesar desse esforço pessoal, dessa necessidade de tantas restrições e correndo tanto risco, ao mesmo tempo, o PCC continuou crescendo. O senhor se sente frustrado?
Gakiya – A gente tem que entender que eu sou uma pessoa só, diante de uma guerra. Pelo menos no início, foi uma guerra solitária, praticamente sem apoio algum. Quando comecei a fazer interceptações telefônicas, eu fazia na minha casa, com um gravador portátil e telefone pré-pago. Claro, com autorização judicial, mas não tinha nenhum apoio, seja das polícias ou do Ministério Público. Eu mesmo fazia, transcrevia. Claro que isso evoluiu. Hoje eu tenho uma equipe que me dá suporte.
Mas o primeiro passo que considero o mais difícil, que realmente mudou a minha vida, foi o isolamento das lideranças. Eu já previa isso, porque isso já aconteceu em outros países. Na Itália, por exemplo, quando isolaram lideranças da máfia, fizeram com que os outros integrantes do escalão de baixo quisessem subir.
Ou seja, causa uma divisão interna, e, aos poucos, isso vai enfraquecendo a organização. O objetivo principal foi esse.
O isolamento ia dificultar as ordens, porque se você precisar de alguma ordem de alguma coisa que só a cúpula pode dar, e ela está toda isolada no sistema federal, isso causa um atraso na decisão. Não que ela não aconteça, mas vai demorar.
Isso foi importante porque quebramos a cadeia de comando. E eu sabia que a médio prazo, isso causaria um racha nessa estrutura de poder, que é o que está acontecendo.
Imagine que o Marcola e todas essas lideranças que assumiram o poder do PCC em 2002 estavam até agora de maneira intocável e unidos. E a partir do momento em que eles foram isolados, as diferenças, alguns problemas internos começaram a aflorar. Isso já era esperado por mim.
Agora, da maneira como está, eu acredito que essa geração de lideranças do Marcola tem prazo de validade. O poder já não é mais o mesmo que ele tinha quando foi isolado. E não chega uma liderança nova. O Roberto Soriano, Abel Pacheco de Andrade, esses caras não são tão importantes para o PCC quanto o Marcola.
Eles ascenderam junto com o Marcola e todos eles são comparsas, tem seguidores. Mas a estrutura do PCC que a gente já conhece, que fundamentalmente vive de tráfico, mas, claro, hoje associada a outros tipos de negócio, ela já está preparada para funcionar sem as lideranças.
O cotidiano do PCC não é afetado de maneira nenhuma com as prisões ou com o isolamento de lideranças, porque eles já dominam toda a logística. Desde, por exemplo, adquirir a droga na Bolívia, no Peru ou na Colômbia direto com os fenecedores, passando pelo transporte, e associação com outras organizações da Europa, que vão fazer a distribuição da droga. Tudo isso está pronto.
E também o tráfico interno que, no Estado de São Paulo, é todo do PCC.
Então não é a prisão desse ou daquele gerente que vai cessar [a organização]. Vou te dar um exemplo. Se o CEO ou toda a diretoria da Coca-Cola forem presos, a produção e a distribuição não vão parar. Você vai continuar tomando Coca-Cola.
Agora, para a Coca-Cola se associar com a Pepsi, só aquele CEO, aquela diretoria, podem resolver isso. As decisões estratégias são tomadas só pelas lideranças.
Outro exemplo é a trégua com o Comando Vermelho. Um líder de rua não pode resolver isso. Quem resolveu isso foi a própria cúpula do PCC que está isolada no sistema penitenciário federal.
Estamos diante de uma organização que só cresceu e continua crescendo, porque a maneira como eles se dividem faz com que eles cresçam. Qualquer um pode batizar outro criminoso. Ele precisa apenas de dois padrinhos, não depende do Marcola, e isso vai se alastrando.
Por isso, após identificar, prender e isolar as lideranças, o que a gente se propôs a fazer foi a asfixia financeira, que é o que estamos fazendo agora, desde 2020.
O isolamento foi em 2019, em 2020 eu coordenei aqui a Operação Sharks [que mirou o núcleo financeiro da organização], que foi importante porque mostrou que o dinheiro do PCC na época não estava ficando aqui no Brasil. A gente já sabia que não estava no banco, e que estava no mercado financeiro formal. Foi ali que descobrimos algo surpreendente para nós: que o PCC mandou US$ 1,2 bilhão para o Paraguai, via doleiro.
Eles entregavam o dinheiro da arrecadação semanal interna do PCC para dois doleiros. Inclusive, por coincidência, num hotel Quality da Faria Lima. Qualquer associação é mera coincidência, porque isso foi 2020 [muito longe da Operação Carbono Oculto, deflagrada agora em 2025 sobre um esquema que utilizava fundos de investimentos e empresas financeiras que operam na avenida Faria Lima para gerar, lavar, ocultar e blindar recursos da atuação da facção no tráfico de drogas e no setor de combustíveis].
Eles entregavam essas malas de dinheiro para o doleiro, que se encarregava de encaminhar esse dinheiro, via dólar-cabo [remessa ilegal, paralela ao sistema bancário], para o Paraguai. E ali já apareciam as fintechs. Porque o doleiro utilizava o banco Neman para fazer essa triangulação. Ele repassava para o banco Neman, que era uma fintech, que depois descobrimos que se chamava Bidu Cobranças.
A fintech contratava uma empresa de segurança e levava o dinheiro do PCC para casas de câmbio no Paraguai. Ali a gente já começou a desenhar essa nova modalidade de ocultação, que não deixa de ser lavagem, já que você está ocultando dinheiro, do PCC, mas fora do Brasil.
Ali já era uma pista A gente não sabia como que esse dinheiro voltava depois. Com a Operação Fim de Linha [2024], que é um desdobramento da Operação Sharks, descobrimos que os réus da Operação Sharks são sócios das empresas [de transporte] TW e Upbus. Então uma coisa ligou à outra.
E aí vem a ligação da infiltração do PCC na prestação de um serviço público essencial, que era o serviço de transporte metropolitano, e a captura da direção dessas empresas por parte da facção. O que levou a Prefeitura de São Paulo a intervir, através de ordem judicial nossa, e afastar essas duas empresas [na licitação dos ônibus].
Estamos prosseguindo na questão do entendimento relativo à participação do PCC hoje no mercado da economia formal e também, utilizando o próprio mercado financeiro para poder lavar e ocultar, seus recursos.

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BBC News Brasil – É possível indicar quem foi o arquiteto dessa migração do PCC para o setor financeiro?
Gakiya – Acho que não dá para indicar uma pessoa, mas um período. E por que isso aconteceu.
A partir de 2017, o PCC entra, e isso eu tenho comprovação, definitivamente no tráfico internacional de cocaína para a Europa.
Isso fez com que o patamar do PCC, tanto em termos de organização, como de arrecadação, crescesse absurdamente.
Em 2010, quando eu já investigava o PCC, eles arrecadavam R$ 12 milhões por ano. Em 2020, só na Operação Sharks, a gente comprovou que eles mandaram R$ 1,2 bilhão para o Paraguai.
E esse valor era apenas relativo à arrecadação do tráfico interno, porque do tráfico externo, o que era recebido na Europa, o doleiro mandava direto da Europa para o Paraguai.
Foi nessa época que começou a diminuir a circulação física do dinheiro. Porque nas arrecadações internas ainda é muito comum as pessoas pagarem a droga nas biqueiras em dinheiro. Embora hoje eles aceitem maquininha e em Pix. Mas em 2020, era só dinheiro.
Então eles levavam 50, 60 milhões e entregavam em dinheiro para o doleiro, que era a arrecadação semanal do Estado de São Paulo. E hoje já não existe mais essa movimentação física do dinheiro.
E quando você não tem mais essa circulação física, você começa a depender de outras pessoas. E aí surge, por exemplo, pessoas como Antonio Vinicius Gritzbach [empresário envolvido em lavagem de dinheiro para o PCC, assassinado em novembro de 2024], e outros operadores que chamo de operadores financeiros, que não são necessariamente integrantes do PCC, mas também são criminosos, que veem uma oportunidade de negócio e se associam ao PCC.
E esses são rostos novos. Se você visse o Antonio Vinicius Gritzbach nos melhores restaurantes de São Paulo, andando de helicóptero, frequentando marinas no Guarujá, desfilando com modelos, ninguém iria suspeitar. Ia achar que era um jovem corretor, engenheiro bem-sucedido do Tatuapé, como tem vários hoje. E esse é o novo rosto do PCC.
E aí vem as ligações com a Faria Lima. Desde 2020 venho alertando pela utilização de fintech e eu era muito criticado no início por isso, diziam que eu estava demonizando o setor financeiro e bancário.
Antes da Operação Carbono Oculto, fizemos a Operação Hydra [fevereiro de 2025], com a Polícia Federal. Foram dois bancos, inclusive de um investigador de polícia, o 2Go Bank, e o InvBank, que era do Anselmo de Fausta, o Cara Preta, um dos maiores narcotraficantes do país, assassinado no Tatuapé, a mando do Vinicius [Gritzbach].
Então tudo o que eu estava falando desde 2020 está se materializando. E agora com a Operação Carbono Oculto, ficou explícita a utilização das fintechs, que aplicam dinheiro nos fundos de investimento. Alguns desses fundos são uma boa maneira de ocultar patrimônio, porque eles permitem que outro fundo de investimento faça o aporte financeiro, criando camadas e você acaba não sabendo quem são os investidores.
BBC News Brasil – Tem uma falha da CVM e do Banco Central nisso?
Gakiya – Isso não há dúvida, está comprovado.
Quando se resolveu abrir o mercado para as fintechs, a decisão não era ruim, porque era para democratizar o acesso ao crédito e fez com que as taxas diminuíssem. Aquele cidadão que não tinha acesso no banco tradicional, conseguia abrir uma conta de maneira muito rápida pelo celular, numa fintech.
Mas isso abriu um flanco também, por uma facilidade muito grande para abrir essas empresas. E os criminosos estão muito bem assessorados hoje, por meio de assessoria tributária, financeira, empresarial, enfim, de tudo quanto é jeito.
O que eles perceberam foi que podiam abrir uma fintech, por exemplo, de pagamento, que não era autorizada a operar como banco, e por isso precisava só de uma autorização para ser aberta, mas não seria fiscalizada nem pelo Banco Central, nem pela Receita e muito menos pelo COAF.
BBC News Brasil – Mas ninguém fiscaliza? Como pode isso?
Gakiya – Eu também te pergunto: como pode? E olha que eu venho falando disso desde 2020. Eu sei que já se sabia na Fazenda que existiam problemas, mas aí é aquele jogo de empurra: O Banco Central diz que não tem obrigação de fiscalizar porque não é um banco, é uma empresa de pagamentos. O COAF, idem, a Receita também.
Mas, infelizmente, nós tivemos que desnudar todas essas falhas de fiscalização, primeiro com a Operação Hydra, depois com a Carbono Oculto. E eu acho que incomodou mais porque chegou também não só nas fintechs, mas nos fundos de investimento privados, que já eram apontados por mim lá atrás como uma fonte importante de possibilidade de lavagem de dinheiro pela ausência de fiscalização e regulamentação.
O próprio Antonio Vinicius Gritzbach já havia nos dito na delação dele que o Cara Preta, através dele, utilizava fundos de investimento para lavar o seu dinheiro.
Me causa uma frustração, é claro, saber que, com todo o esforço pessoal meu, dos meus colegas, enfim, de todas as instituições envolvidas, o PCC só cresceu e se tornou uma máfia. E tudo isso devido ao abandono, à ausência do Estado.
Não pode um agente público, ou vários agentes públicos, ou uma instituição só lutar sozinha quando há todo um sistema, que não é composto só do PCC e a Carbono Oculto deixou isso bem claro. Você junta o PCC com operadores financeiros inescrupulosos e empresários criminosos, que são os que adulteram o combustível, que fraudam o imposto e que são tão perigosos no meu modo de ver quanto os criminosos do PCC.
Eles não têm uma criminalidade violenta, mas tem uma criminalidade, em termos financeiros, muito mais impactante do que o próprio PCC.
E o problema é a associação do PCC com a economia formal. Não é que o PCC vai dominar todo um mercado, mas ele tem um poder de simbiose e de se associar com outros grupos criminosos muito grande, que a gente vem chamado de hibridização criminal, ou convergência criminal.
É frustrante, mas, por outro lado, a gente procura, com as nossas operações, mudar a governança do setor, jogar luz sobre o problema para forçar os órgãos decisórios a mudar a governança pública.
No caso da Carbono Oculto, quando denunciamos isso para a Febraban, sobre o perigo das fintechs, a Febraban percebeu e levou isso também ao ministério da Fazenda como pleito da própria Febraban.
E a Secretaria da Fazenda marcou uma mudança de parâmetro e regulamentação para iniciar em 2029. E após a operação Carbono Oculto, mudou [essa data] na semana seguinte.
Esse resultado acaba sendo mais importante que o resultado da ação penal. É importante que a gente não aguarde o fim desse julgamento para ter algum tipo de resposta para a sociedade.
As grandes empresas, os fundos de investimento, o mercado financeiro vão ter que investir muito no Compliance. E hoje, no Compliance antimáfia, que eu já trato isso como máfia. Senão eles não vão sobreviver no mercado.
Gakiya: Eu também considero muito provável.
BBC News Brasil – Mas isso muda alguma coisa? Qual a avaliação do senhor sobre isso?
Gakiya – Do meu ponto de vista de investigação, posso dizer que o PCC é uma organização que pratica atos de natureza terrorista. Isso é óbvio.
Os ataques de 2001 às bases da PM, a tentativa de explodir o Fórum da Barra Funda e a Bolsa de Valores [em 2002], os ataques de 2006, o sequestro do repórter da Globo [Guilherme Portanova, em 2006] seguido da leitura de um comunicado muito semelhante àqueles do Estado Islâmico, em rede nacional em horário nobre. Isso são atos de natureza terrorista.
Fui ouvido por integrantes do governo Trump neste ano, por duas vezes, e disse isso. O PCC não é considerado uma organização terroristas aqui no Brasil porque a nossa legislação não prevê isso. Prevê que precisa ter um aspecto de intenção de atacar alguma religião, uma etnia ou o próprio governo. Se não tiver esses pressupostos, não basta que o ato seja de natureza terrorista.
Mas nada impede que os Estados Unidos ou qualquer outro país internamente considere o PCC uma organização terrorista. Para eles, isso implica que eles possam fazer outros tipos de intervenção, como está havendo agora no Caribe, por exemplo, em relação à Venezuela e os cartéis.
Eu sei que a posição do governo federal é diametralmente oposta, mas também acho que não fica bem para o Brasil ter uma organização considerada terrorista ou mafiosa.
Mas eu penso que não devemos tapar o sol com a peneira. A omissão do Estado de São Paulo durante essas três décadas proporcionou esse crescimento desenfreado e essa expansão interestadual e depois internacional do PCC.

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BBC News Brasil – Mas, por outro lado já se falou muito sobre o quanto é oportuna a atuação do PCC, sob o ponto de vista de segurança nas ruas, com menos assaltos, porque era algo controlado pelo PCC. Existe, de fato, essa paralisia do governo, porque a facção, de alguma maneira, regula essa paz na rua?
Gakiya – Em 2006, houve uma espécie de acordo informal do Estado com o PCC, um acordo tácito, quando mandaram representantes do governo para o presídio de Presidente Bernardes (SP) para conversar com o Marcola e convencê-lo a falar com outros criminosos para fazer cessar as rebeliões e os ataques.
Aquilo foi, na minha opinião, uma decisão inadequada do governo estadual que mostrou uma fraqueza do Estado de São Paulo a ter que negociar com o líder para que ele determinasse o fim dos ataques e das rebeliões.
E depois de 2006, pairou sempre uma ameaça tácita de que se algo acontecesse, maio de 2006 seria repetido. E aí todo mundo, politicamente, sai perdendo. Nenhum governador, nenhum comandante de forças queria passar por isso.
Na questão prisional houve, sim, na primeira década, um abandono em termos de entender a existência do fenômeno do PCC, de verificar o tamanho do PCC, que estava crescendo.
Naquela primeira década houve uma verdadeira negação do Estado de São Paulo. Eu me lembro de um secretário que disse que o PCC não existia, que era uma criação da imprensa, inclusive um secretário que era oriundo do Ministério Público de São Paulo [Em 1997, o secretário da Administração Penitenciária, João Benedicto de Azevedo Marques, afirmou que o PCC não existia e era uma “ficção”].
E, de fato, o PCC colocou ordem no caos. Estou no MP há 34 anos. Antes do PCC, o sistema prisional era de um jeito. Depois do PCC, de outro.
Havia muitos assassinatos, muitas brigas. Era uma falta de organização interna. Não estou dizendo do Estado, porque o Estado controla a entrada da prisão. Mas depois que o preso está lá dentro, eles acabam se autorregulando. E o PCC fez essa regulação interna de maneira muito eficiente no sentido que ele acabou com os estupros, com as extorsões, com as mortes, salvo aquelas que ele autoriza.
O número de homicídios dentro do sistema diminuiu. Isso é uma realidade. Principalmente nas cadeias ocupadas pelo PCC. E isso acabou também ganhando contornos nas ruas. Porque, na medida em que o PCC também foi ganhando as comunidades e os pontos de venda de tráfico, ele também fez uma aproximação com a comunidade.
E não é uma aproximação só de simpatia, mas de dominação e medo, no sentido de que o sujeito sabe que não pode acionar a polícia. Ele tem que se socorrer no próprio integrante do PCC para resolver o seu problema dentro daquela comunidade. E isso fez com que diminuísse o número de homicídios, porque isso também é autorregulado pelo PCC.
Não quer dizer que a polícia não está trabalhando bastante. Sempre trabalhou. Isso não é uma crítica às polícias. Isso é típico de dominação territorial. Quando se começa a dominar determinados territórios, se faz ali uma simbiose com aquela sociedade, se cria um poder, uma regulação paralela. Não quer dizer que não acontece violência. Ela acontece, mas não pode ser comunicada.
E, normalmente, como não tem disputa interna mais por ponto de venda de droga, não existem mais mortes por esse tipo de disputa, porque o PCC é hegemônico no Estado de São Paulo.
E, nesse caso, não teve nenhum acordo com o Estado. Além disso, passamos para uma fase em que o PCC não precisa mais ostentar a sua violência, porque ele não tem inimigos no território. Dificilmente você vai andar aqui nas comunidades carentes de São Paulo e vai ver criminosos andando desfilando de fuzil como no Rio de Janeiro.
As duas situações são ruins, mas acho que a nossa [em São Paulo] é mais perigosa que a deles [no Rio de Janeiro], porque eles [o PCC] estão em um outro patamar de criminalidade, de domínio de território, de infiltração nos poderes do Estado, de corrupção nas polícias, no Ministério Público, no Judiciário.
BBC News Brasil – Estão na política?
Gakiya: Não dá para dizer que eles estão na política, mas eles começaram a financiar campanhas. E isso vai fazer com que eles tenham candidatos bancados por eles e que certamente vão ter que pagar um preço ao final. E aí pode ser a entrada em uma disputa, como, por exemplo, em uma licitação no setor de transporte, de educação, de saúde.
BBC News Brasil – Isso também na esfera federal? Poderiam, por exemplo, estar financiando campanhas de deputados, de olho em emendas parlamentares?
Gakiya – Sobre isso eu ainda não tenho nada. O que vamos começar a ver agora é que, com o fim do financiamento privado de campanha, essa modalidade foi, de certa maneira, parcialmente substituída pelo financiamento do crime.
Vimos isso aqui em São Paulo, em campanhas para vereador em alguns municípios, e em campanhas para prefeito. É como se pensassem: eu não tenho intenção de ter um deputado trabalhando para mim, mas eu quero ganhar uma obra pública, uma licitação. Eu quero a minha fatia desse bolo, que é um bolo muito generoso.
O que a gente vai ver no ano que vem, é um assédio, ou mesmo uma entrada ainda maior no financiamento de campanhas por parte do crime organizado.
E eu não falo só do PCC, porque a gente sabe que, por exemplo, a máfia dos combustíveis também é crime organizado e também tem interesses em determinados setores. Me parece que isso vai ocorrer com uma proporção maior do que a gente via.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL