
Crédito, Reuters
- Author, Hugh Schofield
- Role, Da BBC News em Paris
Alguns franceses se irritaram nesta semana ao descobrir que o caos político do país virou alvo de piadas dos… italianos.
Em menos de dois anos, a França teve cinco primeiros-ministros, feito político insuperável mesmo nos tempos de turbulência política italiana depois da Segunda Guerra Mundial (1939-45).
Agora, o Parlamento francês — reconfigurado após a decisão do presidente Emmanuel Macron de convocar eleições antecipadas em julho de 2024 — enfrenta dificuldades para formar uma maioria capaz de aprovar o orçamento.
A isso se soma uma greve geral de quinta-feira (19/09), convocada por sindicatos que se opõem às propostas orçamentárias apresentadas anteriormente.
Centelhas de milhares de trabalhadores participaram da greve. Os organizadores disseram que 1 milhão de pessoas entraram em greve, enquanto o Ministério do Interior francês estimou esse número em 500.000, com 80.000 policiais mobilizados para protestos ligados à paralisação. Mais de 300 pessoas foram detidas em toda a França, segundo o Ministério do Interior.
Jornais das cidades italianas de Roma e Turim exibiram uma distinta gioia maligna (alegria maliciosa) ao relatar eventos recentes na França.
Entre eles, a humilhação do recém-destituído primeiro-ministro François Bayrou, os alertas sobre o aumento da dívida e a possibilidade de a economia francesa precisar de socorro do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Acima de tudo, porém, está o declínio do prestígio do presidente francês.
“Então, onde está a grandeza agora?”, questionou o jornal Il Messaggero, de Roma.

Crédito, Reuters
O custo da dívida pública francesa neste ano é estimado em €67 bilhões (cerca de R$ 436,2 bilhões) — valor que consome mais recursos do que todos os ministérios, exceto Educação e Defesa.
As previsões sugerem que até o final da década, esse gasto deve ultrapassar até mesmo esses dois setores, chegando a €100 bilhões (cerca de R$ 652 bilhões) ao ano.
Na última sexta-feira, a agência de classificação Fitch rebaixou a dívida francesa, o que pode encarecer os empréstimos do governo francês, refletindo dúvidas crescentes sobre a estabilidade do país e a sua capacidade de pagar essa dívida.
Deixa de ser apenas hipotética a possibilidade de ter que recorrer, de chapéu na mão, ao FMI para obter um empréstimo ou precisar da intervenção do Banco Central Europeu.
Tudo isso em um contexto de turbulência internacional: guerra na Europa, distanciamento dos Estados Unidos, ascensão inexorável do populismo.

Crédito, Reuters
Na última quarta-feira (10/09), houve um dia nacional de protestos organizado por um grupo chamado Bloquons Tout (Vamos Bloquear Tudo, em tradução livre). Dominado pela extrema esquerda, o protesto teve pouco impacto, exceto por alguns confrontos visíveis nas ruas.
Mas o teste mais importante veio em 18/09, quando sindicatos e partidos de esquerda organizaram grandes manifestações contra os planos do governo.
Para o veterano comentarista político Nicolas Baverez, “neste momento crítico, em que estão em jogo a própria soberania e liberdade da França e da Europa, o país se encontra paralisada pelo caos, pela impotência e pela dívida.”
O presidente Macron insiste que pode tirar o país dessa situação, mas restam apenas 18 meses de seu segundo mandato.

Crédito, Reuters
Uma possibilidade é que os inerentes pontos fortes do país — riqueza, infraestrutura e resiliência institucional — permitam atravessar o que muitos consideram um ponto de virada histórico.
Mas há outro cenário: a França pode sair permanentemente enfraquecida, à mercê de extremistas de esquerda e de direita, tornando-se um novo “homem doente da Europa”. Esse apelido foi dado à Alemanha nos anos 1990 sob o peso da reunificação pós-queda do Muro de Berlim. Em geral, esse termo usado é para rotular as nações que atravessam dificuldades econômicas.
Tudo isso remonta à dissolução desastrosa da Assembleia Nacional por Macron, no início do verão de 2024. Longe de criar uma base mais sólida para governar, o novo Parlamento ficou dividido em três partes: centro, esquerda e extrema-direita.
Nenhum grupo isolado poderia formar um governo funcional, pois os outros dois se uniriam contra ele.
Michael Barnier e, depois, François Bayrou passaram por alguns meses como primeiros-ministros, mas ambos naufragaram na questão central que desafia todos os governos: como o Estado deve arrecadar e gastar seu dinheiro.
Bayrou, um centrista de 74 anos, fez da dívida francesa um totem, que agora é superior a €3 trilhões (cerca de R$18,8 trilhões), ou cerca de 114% do Produto Interno Bruto (PIB).
Ele queria estabilizar os pagamentos cortando €44 bilhões (cerca de R$286,9 bilhões) do Orçamento de 2026.
Bayrou foi derrubado quando os parlamentares de esquerda e extrema-direita se uniram em uma moção de confiança na semana passada. Pesquisas mostraram também que muitos eleitores também eram contrários às ideias do primeiro-ministro, como extinguir dois feriados nacionais para financiar aumentos no orçamento para a Defesa.

Crédito, Reuters
A saída imediata de Emmanuel Macron foi confiar a um membro de seu círculo íntimo a tarefa de testar uma nova abordagem.
Sébastien Lecornu, de 39 anos, nomeado primeiro-ministro na semana passada, é um normando de fala mansa que se tornou confidente presidencial em sessões noturnas de conversa e uísque no Palácio do Eliseu.
Após a nomeação, Macron afirmou estar convencido de que “um acordo entre as forças políticas é possível, respeitando as convicções de cada um”.
Dizem que Macron valoriza a lealdade de Lecornu e o fato de que seu primeiro-ministro não é obcecado com o próprio futuro político.
Depois das tensões com seus dois antecessores — os veteranos Michel Barnier e François Bayrou —, hoje o presidente e o primeiro-ministro estão alinhados.
“Com Lecornu, basicamente significa que Macron é o primeiro-ministro”, argumenta Philippe Aghion, economista que já assessorou o presidente e o conhece bem.
“Macron e Lecornu são, essencialmente, um só.”
A tarefa hercúlea de Lecornu
Macron quer que Lecornu promova uma mudança. De uma inclinação predominantemente política para a direita, Macron agora busca um acordo com a esquerda – especificamente com o Partido Socialista (PS).
Por lei, Lecornu precisa apresentar um Orçamento até meados de outubro, que deve ser aprovado até o final do ano.
A única forma, aritmeticamente, de conseguir isso é se seu bloco centrista receber apoio dos “moderados” à direita e à esquerda — ou seja, dos conservadores Republicanos (LR) e dos socialistas (PS).

Crédito, EPA
Mas o problema é: toda concessão feita a um lado aumenta a probabilidade de que o outro lado se retire.
Por exemplo, os socialistas — que se sentem fortalecidos — exigem uma meta muito menor de redução da dívida. Eles defendem um imposto sobre empresários ultrarricos e a revogação da reforma da Previdência de 2023, de Macron, que elevou a idade de aposentadoria para 64 anos.
Mas essas ideias são inaceitáveis para os Republicanos considerados pró-negócios, que ameaçaram votar contra qualquer Orçamento que inclua essas ideias.
A principal federação de empregadores, Medef (Movimento das Empresas da França, em tradução livre), chegou a declarar que promoverá suas próprias “manifestações em massa” caso a resposta de Lecornu ao impasse orçamentário seja aumentar impostos.

Crédito, EPA
O momento torna a situação ainda mais intratável: a iminente saída de Macron torna improvável que qualquer lado faça concessões. Em março, ocorrerão importantes eleições municipais, seguidas pelas presidenciais em maio de 2027.
Nos extremos do tabuleiro político estão partidos poderosos — o Rassemblement National (Agrupamento Nacional, o RN), à direita, e La France Insoumise (França Insubmissa, o LFI), à esquerda — que gritarão “traidor” ao menor sinal de compromisso com o centro.
Para qualquer político relevante, pode haver, ainda, o instinto de reduzir ao mínimo absoluto o contato com o ativo que se esfarela rapidamente, Emmanuel Macron.

Crédito, Reuters
A alternativa é o fracasso, e a renúncia de mais um primeiro-ministro.
Esse é o cenário apocalíptico de Macron: outra dissolução levando a mais eleições que o Rassemblement National, de Marine Le Pen, pode vencer desta vez.
Ou até — como alguns exigem — a renúncia do próprio Macron por seu papel na presidência do impasse.
A conjuntura de várias crises
Ao analisar a França, sempre é possível adotar um tom menos “catastrofista”. Afinal, o país já enfrentou crises no passado e sempre conseguiu sobreviver, e alguns enxergam aspectos a admirar na França de Macron.
Para o ex-presidente dos Republicanos (LR) Jean-François Copé, “os fundamentos da economia francesa, incluindo o equilíbrio entre importações e exportações, continuam sólidos. Nosso nível de desemprego é tradicionalmente maior que o do Reino Unido, mas nada desastroso. Temos um alto nível de criação de empresas e crescimento melhor que o da Alemanha.”
Aghion, ex-assessor de Macron, também se mostra relativamente otimista. “Não estamos prestes a afundar, como a Grécia”, afirma. “E o que Bayrou disse sobre a dívida foi um alerta eficaz.”
Mas, para outros, o estado mutável das relações mundiais torna tais observações excessivamente otimistas, se não complacentes.

Crédito, Reuters
Segundo o economista Philippe Dessertine, diretor do instituto de finanças da Universidade Sorbonne (IHFI), “não podemos simplesmente ignorar a hipótese de intervenção do FMI, como fazem os políticos. É como se estivéssemos sobre um dique. Parece sólido o suficiente. Todos estão em cima dele, e continuam nos dizendo que é firme. Mas por baixo, o mar vai corroendo, até que um dia tudo desmorona de repente.”
“Infelizmente, é isso que acontecerá se continuarmos a não fazer nada.”
De acordo com Françoise Fressoz, do jornal Le Monde, “todos nós nos tornamos totalmente viciados em gastos públicos. Tem sido o método usado por todos os governos, de esquerda e direita, nos últimos cinquenta anos — para apagar os incêndios da insatisfação e comprar paz social”.
“Hoje, todos percebem que esse sistema já deu o que tinha que dar. Estamos no final do antigo Estado de bem-estar social. Mas ninguém quer pagar o preço ou enfrentar as reformas necessárias.”

Crédito, EPA
O que acontece na França agora é a conjunção de várias crises ao mesmo tempo: política, econômica e social — e é isso que torna o momento tão significativo.
Nas palavras do pesquisador Jérôme Fourquet, na semana passada, “é como uma peça incompreensível sendo encenada diante de um teatro vazio.”
Os eleitores são informados de que a dívida é uma questão de vida ou morte nacional, mas muitos não acreditam nisso ou não entendem por que deveriam ser eles a pagar.
No centro de tudo está um homem que chegou ao poder em 2017 carregado de esperança, prometendo aproximar esquerda e direita, empresas e trabalhadores, crescimento e justiça social, eurocéticos e euroentusiastas.
Após o mais recente fiasco, o contundente comentarista francês Nicolas Baverez chegou a uma conclusão devastadora no jornal Le Figaro: “Emmanuel Macron é o verdadeiro alvo do desdém popular e assume inteira responsabilidade por este naufrágio”.
“Como todos os demagogos, ele transformou nosso país em um campo de ruínas.”
Fonte.:BBC NEWS BRASIL