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21 de setembro de 2025

O ponto cego da ciência que ameaçaria o futuro da Terra – 21/09/2025 – Ciência

O ponto cego da ciência que ameaçaria o futuro da Terra – 21/09/2025 – Ciência

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Tão enamorada por seu próprio sucesso, a ciência (e quem a pratica) parece ter se esquecido de suas origens, de seus alicerces calcados no mundo natural e na experiência humana. Isso, por sua vez, está trazendo ameaças cada vez maiores à civilização, na forma de crises como a das mudanças climáticas e a da sexta grande extinção de espécies.

O alerta é lançado por um trio de pesquisadores num livro-manifesto chamado “Ponto Cego – Por que a ciência não pode ignorar a experiência humana”. Escrito pelo físico teórico brasileiro Marcelo Gleiser em parceria com o astrofísico americano Adam Frank e o filósofo americano Evan Thompson, ele explora um problema que perpassa todo o fazer científico, desde o estabelecimento de suas bases no Iluminismo.

Para os autores, o avanço científico criou uma confusão entre o que é a realidade e o que são os modelos que a própria ciência constrói e testa numa tentativa de se aproximar cada vez mais dela.

É uma ideia um tanto quanto abstrata, que pode ser entendida de forma mais simples por meio de exemplos. Digamos, a estrutura dos átomos. A mecânica quântica fornece descrições precisas do comportamento das partículas e forças que regem o mundo atômico, delimitando o que se pode e não se pode conhecer a respeito delas a cada dado momento e circunstância.

Isso naturalmente leva à tentação de imaginar que, quando falamos de quarks (componentes dos prótons e nêutrons) e léptons (grupo de partículas da qual os elétrons fazem parte), estamos falando da própria natureza, quando na verdade estamos discutindo um modelo (que se aproxima, talvez tanto quanto possível) da realidade.

Esse é o cerne do dito ponto cego, que o trio julga abarcar ao menos seis fenômenos diferentes: a bifurcação da natureza (a separação entre o que é a percepção humana de um fenômeno, digamos, as cores, e o que é parte da realidade física, ondas de luz com diferentes comprimentos de onda), o reducionismo (grosso modo, a ideia de se pode compreender o todo a partir do estudo individual de seus mínimos componentes), o objetivismo (a busca por uma visão, por assim dizer, “divina” da realidade, livre da subjetividade humana), o fisicalismo (a ideia de que tudo que existe é físico, algo que se costumava chamar de materialismo), a reificação das entidades matemáticas (o salto de fé de que há realidade em nossos construtos matemáticos por conta de seu poder explicativo nos fenômenos estudados por meio deles) e o tratamento da experiência como algo epifenomenal (a noção de que a consciência não passar de uma ilusão gerada pelo cérebro).

Após elencar essas facetas do dito ponto cego, os autores passam a explorar as origens dessas ideias, que consistem essencialmente numa filosofia que sustenta a prática científica moderna, e mostrar como estão entrelaçadas com os objetivos do próprio empreendimento científico, como forma de domínio sobre a natureza (mentalidade atrelada à civilização ocidental que deu vida à revolução industrial).

É um processo que segue em marcha acelerada até hoje, já demonstrando um esgarçamento do modelo na forma dos colapsos ambientais e mesmo sociais que temos vivido. Isso, naturalmente, é um problema. “É importante lembrar que o Ponto Cego é como o ar que respiramos: é uma mentalidade culturalmente onipresente, não uma constelação de ideias filosóficas obscuras.”

O livro é tão didático quanto possível, chegando até mesmo a ser repetitivo em alguns momentos para reforçar suas teses. Não é leitura suave. Exige atenção e reflexão. Mas oferece ideias suficientemente fascinantes para prender o interesse do leitor e refletir sobre coisas que tratamos como dadas. Enxergar o ponto cego é justamente questionar os fundamentos por trás do que pode ser visto hoje como um culto à ciência.

A obra se desdobra explorando, em capítulos, as diversas manifestações do ponto cego no estudo do Universo, da vida e da consciência e do planeta. É inevitável sentir uma ponta de pessimismo ao perceber o enraizamento dessa percepção limitada do fazer científico e dos impactos que ela pode ter. Mas o livro termina num tom esperançoso, indicando que a própria ciência tem em seu bojo a virtude da autocorreção e que o ponto cego vem se tornando mais evidente nas mais variadas áreas.

O que será preciso para que seja superado, os autores não dizem, alegando ser uma construção coletiva ainda a ser erguida. Contudo, a sensação que fica é que já estamos começando a trilhar esse caminho e que, apesar de todos os desafios, o século 21 ainda pode ter seu momento de novas luzes, trazendo uma compreensão mais madura de como a ciência e a experiência humana são inseparáveis —apesar de todas as dores de crescimento que ainda nos aguardam pelo caminho.



Fonte.:Folha de S.Paulo

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