A medicina reprodutiva já permite que um filho seja gerado mesmo após o falecimento de um dos pais. No entanto, essa possibilidade traz consigo desafios jurídicos, emocionais e éticos que exigem cuidado e reflexão.
Recentemente, a atriz norte-americana Laura Orrico, de 48 anos, anunciou estar grávida do marido falecido há mais de uma década e reacendeu um dos debates mais sensíveis da medicina reprodutiva: a possibilidade de conceber um filho mesmo após a morte de um dos genitores.
O casal havia congelado o sêmen dele antes do diagnóstico de câncer, e o material foi utilizado agora, dez anos depois, para realizar o sonho da maternidade. O caso viralizou nas redes sociais e levantou uma série de questões sobre os limites da ciência, os trâmites legais e os impactos emocionais envolvidos.
O que é a reprodução assistida post mortem
Trata-se do uso de material genético — como espermatozoides, óvulos ou embriões — que foi congelado em vida, com finalidade reprodutiva, e que vem a ser utilizado após a morte do doador. O procedimento pode envolver técnicas como inseminação intrauterina ou fertilização in vitro (FIV), a depender do material armazenado e das condições clínicas da mulher.
A medicina moderna já permite que esse material seja preservado com segurança por décadas, sem perda significativa da qualidade, desde que o congelamento e o armazenamento tenham sido realizados corretamente.
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O que diz a regulamentação brasileira
No Brasil, a prática é permitida desde que siga critérios específicos estabelecidos pela Resolução nº 2.320/2022 do Conselho Federal de Medicina (CFM). As principais exigências são:
- O casal deve ter mantido uma união estável ou casamento legal;
- O falecido deve ter deixado autorização expressa, formal e assinada, permitindo o uso do material genético após sua morte;
- O objetivo da criopreservação deve ter sido a reprodução assistida, e não outros fins, como pesquisa.
Essa autorização é obrigatória e precisa estar arquivada junto à clínica de reprodução. Sem esse consentimento formal, o uso do material é proibido, mesmo que haja desejo do cônjuge sobrevivente.
Questões legais e lacunas jurídicas
Apesar da normatização médica, a legislação brasileira ainda apresenta lacunas, especialmente no que diz respeito ao registro civil, herança e previdência.
Um filho concebido após a morte do pai tem direito à herança?
O nome do genitor pode constar na certidão de nascimento?
Como fica a pensão em caso de vínculo com planos de saúde ou previdência privada?
Essas perguntas ainda são objeto de debate jurídico e vêm sendo enfrentadas caso a caso. Em geral, se o uso do material foi consentido formalmente, há jurisprudência favorável ao reconhecimento da filiação, mas a ausência de uma lei federal clara torna o tema delicado e inseguro para algumas famílias.
Entre o desejo e o luto
Para além da técnica, a reprodução post mortem carrega questões profundas de ordem emocional. Para quem decide gestar após a perda de um parceiro ou parceira, a decisão costuma estar associada a um desejo de continuidade afetiva — de manter vivo um vínculo por meio de uma nova vida.
No entanto, especialistas recomendam que esse tipo de escolha seja feita com apoio psicológico, especialmente para garantir que o luto tenha sido elaborado de forma saudável e que a gestação ocorra em um ambiente emocionalmente equilibrado.
A chegada do bebê, nesses casos, pode ser vivida como uma homenagem ou símbolo de superação, mas também pode reabrir feridas se não houver suporte adequado.
Casos reais: ciência versus tempo
Com o avanço da criopreservação, já existem registros de bebês nascidos a partir de espermatozoides ou embriões congelados há mais de 20 anos. O tempo não é mais uma barreira técnica. O que determina o sucesso são fatores como:
- Idade e saúde da mulher que vai gestar;
- Qualidade do material genético;
- Técnica de fertilização utilizada;
- Preparo do endométrio e condições clínicas gerais.
Em muitos casos, as taxas de sucesso são similares às de procedimentos realizados com material recente, desde que a qualidade tenha sido preservada.
Quando o fim não é o fim: novos contornos da maternidade e paternidade
A reprodução assistida post mortem é uma das fronteiras mais complexas da medicina reprodutiva contemporânea. Ela exige o equilíbrio entre tecnologia, afeto, autonomia e responsabilidade. Representa, ao mesmo tempo, a realização de um desejo legítimo e a necessidade de enfrentar implicações legais e emocionais relevantes.
Mais do que responder se é possível ou permitido, a grande pergunta é: estamos preparados para as novas formas de nascer, de ser família e de perpetuar afetos?
A medicina pode, sim, oferecer meios para que a vida continue mesmo depois da morte. Mas, como em toda decisão que envolve a criação de um novo ser humano, é fundamental que o amor venha acompanhado de estrutura, ética e consciência.
*Maria Cecília Erthal é médica especialista em reprodução assistida e membro da Brazil Health
(Este texto foi produzido em uma parceria exclusiva entre VEJA SAÚDE e Brazil Health)
Fonte.:Saúde Abril