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- Author, Myles Burke
- Role, BBC Culture
John Wolfenden (1906-1985) não estava preparado para a reação negativa que o seu seco e acadêmico relatório governamental de 155 páginas causaria entre as pessoas.
“Todo tipo de pessoa disse todo tipo de coisa — e todo tipo de pessoa escreveu todo tipo de coisa sobre a calçada em frente à nossa casa”, contou ele à BBC. “Tenho uma maldição oficial de uma seita religiosa, datilografada.”
Wolfenden ficou surpreso com a reação “violenta” da imprensa: “Eu não esperava que aquilo fosse causar tanto furor.”
O Relatório do Comitê Departamental sobre Crimes Homossexuais e Prostituição, mais conhecido como o Relatório Wolfenden, foi publicado no dia 4 de setembro de 1957.
O livro desapareceu rapidamente das prateleiras. Sua primeira impressão de 5 mil cópias foi vendida em questão de horas.
Contrariando as expectativas do governo, o relatório provocou um debate público feroz no Reino Unido.
O secretário britânico do Interior, David Maxwell Fyfe (1900-1967), foi aconselhado a formar o comitê, devido ao desconforto do governo com duas questões: a visibilidade das profissionais do sexo nas ruas de Londres e o aumento do número de homens presos por atos homossexuais — na época, considerados ilegais no país.
Este aumento foi ocasionado pela própria política de Maxwell Fyfe, que levou a polícia a preparar ciladas e prender homens gays deliberadamente.
“Você sabia o que poderia acontecer”, declarou em 2010 Rex Batten, um homem gay que morava em Londres naquela época, ao programa de rádio Witness History, do Serviço Mundial da BBC.
“Você conhecia os casos que haviam surgido, as pessoas que estavam na prisão há um ano, dois anos, três anos. Você queria aquilo? A resposta era ‘não’.”

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A repressão intensiva de Maxwell Fyfe fez com que diversos homens conhecidos fossem processados por comportamento homossexual.
Eles incluíram o criptoanalista Alan Turing (1912-1954), em 1952; o ator John Gielgud (1904-2000) em 1953, que havia acabado de receber o título de cavaleiro; e o político conservador lorde Montagu de Beaulieu (1926-2015), em 1954.
Estes casos motivaram extensa cobertura da imprensa e causaram constrangimento à sociedade britânica.
Ao formar o comitê, Maxwell Fyfe pretendia encontrar novas formas de regulamentação, para que este tipo de caso deixasse de gerar interesse da imprensa e debate público.
Como Wolfenden se esforçou para explicar à BBC em 1957, no dia da publicação do relatório, a missão do comitê não era julgar a moralidade deste tipo de comportamento.
“Nossa principal preocupação é com a ordem pública, não com a moralidade privada”, declarou ele ao jornalista da BBC Godfrey Talbot (1908-2000).
John Wolfenden presidiu o comitê a partir de 1954. Ele era formado por quatro mulheres e 11 homens.
Seus membros eram especializados em direito, medicina, religião e incluíam participantes do Girl Guides, a maior organização para meninas e mulheres jovens do Reino Unido.
Por três anos, eles ouviram evidências da polícia, psiquiatras e líderes religiosos, além do testemunho de homens gays cujas vidas haviam sido afetadas pela legislação.
Uma das pessoas ouvidas foi o ex-correspondente real do jornal britânico The Daily Mail Peter Wildeblood (1923-1999). Ele havia sido condenado por “grave indecência”, junto com lorde Montagu.
Mas o comitê não ouviu evidências de profissionais do sexo.
Penas severas para profissionais do sexo
O relatório final do comitê recomendou que atos homossexuais consensuais privados entre homens maiores de 21 anos de idade “deixassem de ser infrações penais”.
O comitê não tratou de atos homossexuais entre mulheres porque não havia lei em vigor no Reino Unido proibindo esses atos.
O relatório estava longe de ser pioneiro. Na época da publicação, os atos homossexuais não eram considerados crime em diversos outros países europeus, como a França, Itália, Holanda, Bélgica, Suécia, Dinamarca e Espanha.
Já em relação à prostituição, as recomendações do Relatório Wolfenden eram muito mais severas. Em vez de defender a descriminalização, o relatório recomendava reduzir o ônus da prova para apresentar acusações.
Ele sugeria que as profissionais do sexo condenadas mais de uma vez enfrentassem penas cada vez mais severas, chegando a três meses de prisão na terceira condenação.
O relatório também recomendava incluir a prostituição masculina no rol de crimes passíveis de punição.
As recomendações não pretendiam tornar o trabalho sexual mais seguro para os envolvidos, mas, como Wolfenden explicou para Talbot, apenas torná-lo menos visível para o público em geral.
“Minha esperança e meu empenho era este”, explicou ele.
“Atualmente, existem em Londres, e em outras cidades, ruas onde, se eu estiver andando por elas com minha filha de 14 ou 15 anos de idade, preciso fazer um desvio para evitar aqueles lugares. E, honestamente, eu não acho que deveria precisar fazer isso.”
Leitura desconfortável
Wolfenden defendia que o seu relatório poderia ser “uma contribuição para a compreensão, pelas pessoas comuns, desses temas complicados e um tanto difíceis.”
Mas, do ponto de vista atual, sua leitura é desconfortável.
O relatório rejeitava a ideia de que a homossexualidade fosse uma doença mental, mas ainda condenava a orientação como “imoral” e “psicologicamente destrutiva”. E incentivava a realização de mais pesquisas sobre suas causas e as chamadas possíveis “curas”.
Tudo isso, mesmo considerando que o filho do próprio Wolfenden, Jeremy, declarou ao seu pai ser gay, antes que ele fosse convidado a presidir o comitê.
A esperança do governo era reduzir o debate público, mas o que se viu foi o efeito contrário. Membros da imprensa, alguns grupos religiosos e certos políticos acusaram o Relatório Wolfenden de ser uma “ameaça à moralidade pública”.
John Wolfenden contou à BBC que o relatório “foi chamado, por exemplo, de ‘propostas para legalizar a degradação em nosso meio’.”
O Daily Mail atacou o relatório, declarando que “grandes nações caíram e impérios se desintegraram porque a corrupção se tornou socialmente aceitável”.
Já a parlamentar trabalhista escocesa Jean Mann (1889-1964) afirmou que “não se sabe onde irá terminar. Podemos até ter maridos seduzidos para abandonar as esposas.”

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O relatório também recebeu uma fria recepção do próprio secretário do Interior que o havia encomendado.
Maxwell Fyfe esperava que o relatório defendesse o policiamento mais rigoroso do comportamento homossexual. Ele rejeitou a proposta de descriminalizá-lo, mesmo com o apoio do arcebispo da Cantuária, da Associação Médica Britânica e da Associação Nacional dos Funcionários de Reinserção Social às recomendações do relatório.
Mas o governo adotou rapidamente as orientações de Wolfenden sobre a prostituição. A Lei dos Crimes nas Ruas foi aprovada em 1959, concedendo à polícia amplos poderes para prender mulheres suspeitas, gerando medidas agressivas contra o trabalho sexual visível.
As discussões sobre a perseguição legal a homossexuais não terminaram com o relatório.
Em março de 1958, o jornal britânico The Times publicou um artigo do acadêmico Tony Dyson (1935-1998), convocando o governo a analisar novamente a descriminalização.
Também assinaram o artigo personalidades importantes da época, como o ex-primeiro-ministro britânico Clement Attlee (1883-1967), o escritor J.B. Priestley (1894-1984) e o filósofo Bertrand Russell (1872-1970).
Naquele mesmo ano, surgiu a Sociedade para a Reforma da Legislação Homossexual, defendendo as mudanças. Mas seria necessário esperar uma década, a partir da publicação do Relatório Wolfenden, para que suas recomendações se transformassem em lei.

Em 1967, o Parlamento britânico aprovou a Lei dos Crimes Sexuais. Segundo ela, os homens homossexuais não seriam mais processados por manterem relações sexuais consensuais privadas.
A lei se aplicava apenas à Inglaterra e ao País de Gales. O sexo entre dois homens só seria descriminalizado na Escócia em 1980 e a Irlanda do Norte adotou a medida dois anos depois.
Mesmo na Inglaterra e em Gales, a lei não se aplicava aos membros das forças armadas. E a idade de consentimento para os homens gays foi estabelecida em 21 anos, superior aos 16 anos necessários para o sexo entre homens e mulheres.
Em 1994, a idade mínima foi reduzida para 18 anos e equiparada aos adultos heterossexuais seis anos depois.
Apesar das falhas, o Relatório Wolfenden despertou um debate público sobre a igualdade de direitos, a moralidade e o papel do Estado.
Como Wolfenden declarou à BBC em 1957, “se as nossas recomendações forem aceitas em relação aos crimes homossexuais, seria feita, eu acho, muita justiça ao colocar este tipo específico de comportamento na mesma categoria e tratá-lo da mesma forma que outros tipos de comportamentos privados de pessoas adultas”.
Este debate, por fim, permitiu que homens gays, como Rex Batten, vivessem livremente, sem medo da perseguição policial.
“O que nós queríamos era realmente poder viver juntos como parceiros, como fazem hoje os jovens de 20 anos de idade”, contou ele ao Witness History.
“Nós simplesmente queríamos poder viver a nossa vida livremente.”
Fonte.:BBC NEWS BRASIL