Instituídas no início da década de 2010 no ensino superior e nos concursos públicos federais brasileiros, as cotas foram inicialmente apresentadas como políticas temporárias, sujeitas a revisão em dez anos. As discussões para a elaboração das leis indicavam um possível horizonte de término, embora não se fixasse uma data. Nos últimos meses, porém, sinais do governo, do Judiciário e do Congresso deixam claro que um fim para esse sistema não se vislumbra – pelo contrário, ele tende a se expandir indefinidamente.
Na semana passada, o partido Rede Sustentabilidade protocolou quatro ações diferentes no Supremo Tribunal Federal (STF), somando-se a uma que o partido já havia apresentado em agosto. O pacote levado ao STF traz questionamentos contra leis estaduais e contra mecanismos adotados em concursos e universidades.
Uma das ações contesta uma lei da Paraíba que condiciona o acesso às cotas raciais a um limite de renda e a um tempo mínimo em escola pública; segundo a Rede, isso desvirtua a natureza da política, ao dar menos relevância ao critério racial.
Outra ação pede que o Supremo acabe com os sorteios usados em concursos quando há poucas vagas em disputa. Hoje, por exemplo, se um cargo oferece três, quatro ou cinco vagas, alguns editais fazem sorteio para decidir se uma delas será reservada a cotistas. A Rede defende que, nesses casos, a reserva seja automática, sem depender da sorte, garantindo a potenciais cotistas a concorrência simultânea na ampla e na cota.
Em outra ação, a Rede questiona regras que permitem reduzir o percentual de reserva abaixo dos 30% previstos hoje em nível federal, buscando uniformizar a aplicação da política em todo o país. O partido também levou ao STF denúncias de segregação entre bolsistas e pagantes em escolas privadas beneficiadas com isenção fiscal, pedindo regras de transparência e fiscalização.
Os processos foram ajuizados entre agosto e setembro de 2025 e fazem parte de uma estratégia de judicialização do tema. A Rede pede em todos os casos que a Corte dê uma interpretação uniforme para todo o país.
Congresso, governo federal e universidades ampliam alcance das cotas
As ações da Rede não são o único sinal da tendência de expansão das cotas. Em maio deste ano, ao revisar a lei de cotas para concursos públicos de 2014, o Congresso aprovou a elevação do percentual de cotas raciais de 20% para 30%. A medida foi sancionada pela Presidência e passou a valer para concursos realizados a partir de junho de 2025.
Além do aumento, houve a ampliação dos beneficiários, com a inclusão de indígenas e quilombolas. A lei também estabeleceu que a reserva deve ser aplicada em todas as fases dos concursos e em todas as vagas, sem possibilidade de restrições.
No primeiro ano do terceiro governo Lula, em 2023, quando a lei das cotas no ensino superior foi revista depois do prazo de dez anos previsto na lei de 2012, o resultado já havia sido uma expansão do sistema. O alcance da política foi ampliado para além da graduação e a novos grupos sociais.
A Lei nº 14.723, sancionada em 13 de novembro de 2023, reduziu o teto de renda per capita para cotas, facilitando o acesso de candidatos mais pobres. Também incluiu os quilombolas de forma expressa entre os grupos beneficiários.
Outra mudança foi no cálculo das vagas de ampla concorrência. Antes, um candidato cotista que conseguisse nota suficiente também na ampla podia acabar ocupando duas posições na conta, o que diminuía o espaço para outros cotistas. Desde 2023, essa sobreposição não existe mais: a vaga na ampla continua valendo, mas abre espaço para que outro candidato entre pela cota, o que tende a aumentar o número total de beneficiados.
A lei também criou mecanismos de permanência no ensino superior, como bolsas específicas, e abertas as portas para a pós-graduação, com incentivo à reserva de vagas em programas de mestrado e doutorado.
Além das medidas adotadas pelo Congresso, pelo governo federal e pelo Judiciário, crescem também iniciativas estaduais e em órgãos públicos. As novidades não se limitam a cotas raciais: pessoas transexuais têm ganhado cada vez mais espaço.
Na semana passada, por exemplo, a Câmara Municipal de Porto Alegre aprovou uma lei que reserva 1% das vagas nos concursos do serviço público municipal para transexuais e travestis. Desde 2024, a Defensoria Pública da União (DPU) tem cotas para pessoas trans em seus processos seletivos para defensores, servidores e estagiários.
Em abril deste ano, a Unicamp adotou cotas para esse público no processo seletivo para seus cursos. Instituições como a Universidade de Brasília (UnB), a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a Universidade Federal da Bahia (UFBA), a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a Universidade Federal Fluminense (UFF) já fazem o mesmo, em decisões próprias tomadas principalmente a partir de 2023.
Falta de horizonte de término é inerente ao sistema de cotas, diz professor
Para Paulo Cruz, professor de filosofia e colunista da Gazeta do Povo, a ausência de horizonte de término é inerente ao sistema de cotas.
“Nunca vão chegar a um patamar em que vão dizer: ‘Ah, agora está bom’. Quem é que vai falar isso? Não tem como definir a efetividade do sistema, porque não existem dados. Há um monte de dados que a gente precisaria avaliar”, comenta. “Colocam um sistema de ação afirmativa com um prazo de validade, e esse prazo de validade vai se estendendo.”
Para ele, o sistema é “feito para se perpetuar, porque não se consegue calcular a efetividade”. “Vamos estar sempre devendo. Uma vez que você implanta um sistema de ação afirmativa, dificilmente consegue remover. Ele sempre vai atuar numa perspectiva indefinida do objetivo. Qual que é o objetivo da cota? É ampliar o número de pessoas negras nas universidades, nos concursos públicos. Ampliar quanto? Quando chega? Não existe isso”, critica.
Segundo ele, a tendência é que as cotas continuem aumentando, porque a avaliação de seus resultados está baseada em um “achismo otimista” que se retroalimenta.
“O sistema vai sempre operar na dificuldade de analisar a efetividade. Sempre vai cair no mesmo lugar. Passou 10 anos? Vamos avaliar. Aí a avaliação sempre vai ter como resposta: ‘Olha só, está dando certo. Mais negros estão entrando na universidade. Então vamos continuar'”, ironiza.
Fonte. Gazeta do Povo