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5 de outubro de 2025

Narrativa de ‘Nakba contínua’ não assume responsabilidades – 04/10/2025 – Ilustríssima

Narrativa de ‘Nakba contínua’ não assume responsabilidades – 04/10/2025 – Ilustríssima

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[RESUMO] Em resposta a Diogo Bercito, historiador sustenta que há forças políticas que se posicionam pela destruição do Estado judeu e instrumentalizam a causa palestina para dar legitimidade a essa intenção. O autor argumenta que a noção de “nakba contínua” reflete a experiência de um sofrimento real que precisa ser reconhecido, mas, quando usada como explicação histórica, gera uma narrativa que não assume responsabilidades passadas nem políticas presentes.

Em artigo nesta Folha, Diogo Bercito fala de um consenso internacional que está se formando contra Israel; dos protestos políticos ditos “pro-palestinos” nos países ocidentais que pedem o boicote a Israel como manifestações legítimas baseadas no direito e que visariam uma paz justa entre israelenses e palestinos e, por fim, do sofrimento palestino como uma “nakba contínua”. Cada um destes três pontos merece ponderação e crítica.

De fato, vai se formando um consenso internacional contra Israel, mas não há como não ver que neste aparente consenso existe um dissenso fundamental. Uma parte da comunidade internacional, constituída pela maioria dos países democráticos, não está contra Israel, mas contra o governo de Binyamin Netanyahu, seus crimes na guerra de Gaza e sua política de expansão dos assentamentos judaicos na Cisjordânia.

As democracias começam a se colocar assertivamente contra esta política nefasta e em favor de um Estado palestino que coexista em paz com o Estado de Israel. Bem compreendida, esta posição não é anti-Israel, mas pró-Israel, pois joga no sentido de ajudar a salvar Israel da política suicida de sua extrema direita.

Uma outra parte das forças políticas internacionais, entretanto, posiciona-se claramente pela destruição de Israel e instrumentaliza a causa palestina para tentar conferir legitimidade a este programa criminoso.

Há poucos Estados que pregam abertamente esta política de aniquilação, com destaque para o Irã. Mas há outros que a apoiam de forma não oficial, como a África do Sul, uma democracia parasitada pelo populismo cujo governo trai abertamente o legado de Nelson Mandela. Para quem tiver dúvida, basta ver as alegações iniciais dos advogados sul-africanos na acusação de genocídio que seu país move contra Israel na Corte Internacional de Justiça (CIJ).

Nos países ocidentais, estas forças regressivas e antissemitas se encontram sobretudo em movimentos políticos da sociedade civil e se dividem em três grupos: setores da extrema-direita tradicional; setores radicalizados das comunidades árabes/muçulmanas; e grande parte da chamada “esquerda global”, tanto em sua versão “campista”, da escola da Guerra Fria, quanto em sua versão dita “decolonial”.

Todas estas forças regressivas convergem no antissionismo, a forma contemporânea do antissemitismo escatológico, que opera deslocando para o significante “sionista” todos os tropos e clichês que o antissemitismo moderno associa ao significante “judeu”.

O programa político destes grupos para os judeus israelenses é o extermínio/limpeza étnica, o qual, algumas vezes, é cinicamente apresentado ao público como solução de um “Estado democrático para ambos os povos”.

Já para os judeus da diáspora —judeus “sionistas” cujo crime hediondo é defender o direito de autodeterminação dos judeus israelenses—, seu objetivo é transformá-los novamente em párias.

Foram estes grupos que começaram a se manifestar massivamente nas ruas e nas redes do Ocidente para festejar o massacre de 7 de Outubro, que completa dois anos (veja o livro “Depois do Pogrom“, de Brendan O’Neill). São estes mesmos grupos que defendem o movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), que Bercito alega não ter nada de antissemita.

Em artigo que escrevi em 2016 para a Revista Fevereiro, embora tenha apontado para aspectos antissemitas no BDS, afirmei que, apesar de tudo, se tratava que de um movimento que buscava a paz e com o qual era preciso dialogar. Um erro pelo qual me penitencio.

O antissionismo está na medula do BDS e seu objetivo não tem nada a ver com justiça e paz, mas com acabar com Israel. Isto se evidencia tanto pela sua defesa intransigente do direito de retorno palestino quanto por seus métodos injustos e indiscriminados, que, usando a bandeira da “não-normalização”, visam, no limite, transformar todos os israelenses em párias internacionais.

Com o BDS, vemos o espetáculo vergonhoso de artistas e intelectuais europeus, americanos, brasileiros etc., que nunca defenderam o boicote contra si mesmos, defenderem-no exclusivamente para seus colegas israelenses. Com a diferença de que, se seus respectivos países fossem boicotados desta forma por violações de direitos humanos praticadas por seus governos, certamente o objetivo não seria destruí-los.

Mas com relação a Israel o objetivo é justamente este, e é precisamente por isso que um boicote indiscriminado é defendido apenas contra os israelenses. Em resumo, BDS ou como destruir um povo instrumentalizando a solidariedade a outro povo, o direito internacional e palavras de ordem pseudodemocráticas.

Sobre a ideia de intelectuais palestinos de que a história palestina se resumiria a uma “nakba contínua”, é preciso dizer duas coisas.

Penso que, subjetivamente, ela reflete a experiência de um sofrimento real que precisa ser acolhido e reconhecido. Mas, quando o sofrimento é hipostasiado em explicação histórica, acaba-se produzindo mais uma narrativa vitimária que serve à propaganda e à desresponsabilização política.

Diferente do que sugere Bercito, a nakba não foi a expulsão de 700 mil palestinos que ocorreu como consequência da criação de Israel. A nakba foi a fuga/expulsão de palestinos que derivou da posição árabe de rejeitar a decisão da Assembleia Geral da ONU para a partilha da Palestina em dois Estados e partir para uma guerra de extermínio contra os judeus da região.

No dia seguinte à votação da ONU de 29 de novembro de 1947, a liderança árabe da Palestina declarou uma jihad contra os judeus e iniciou uma guerra civil com o objetivo de destruí-los.

Em maio de 1948, os exércitos de cinco Estados árabes intervieram para ajudar seus correligionários locais na consecução deste objetivo.

Contra as expectativas gerais, os judeus venceram e, após o armistício de 1949, existiam 700 mil árabes da Palestina no exílio, que haviam fugido ou sido expulsos.

Então, o recém-nascido Estado judeu se viu diante de um dilema: ou aceitava o retorno dos refugiados, o que tornaria os judeus minoria em seu próprio país, retirando-lhes assim as condições mínimas de autodefesa e condenando-os, portanto, à aniquilação; ou recusava o retorno, selando com isso uma grande violência e injustiça contra as pessoas que foram expulsas de suas terras.

É por esta razão que Israel não podia aceitar o retorno dos refugiados palestinos em 1949. E é por esta mesma razão que Israel não pode aceitar o retorno de milhões de seus descendentes hoje.

Apresenta-se claramente aqui um choque de direitos, em que o direito de retorno dos refugiados está em antagonismo com o direito de autodeterminação, à segurança e à vida dos judeus israelenses.

A cultura Ocidental tem um termo para nomear uma situação de antagonismo irremediável, em que ambos os lados têm sua razão e sua legitimidade e em que, portanto, a injustiça se impõe como uma força objetiva: tragédia. Mas a tragédia da nakba foi desencadeada pelas lideranças árabes, e não pelas lideranças sionistas.

Como sabem até as pedras de Jerusalém, a solução de dois Estados para dois povos é a única solução possível e justa para o conflito israelense-palestino, pois é a única que atende aos inalienáveis direitos de autodeterminação e segurança de ambos os povos.

Israel precisa abdicar dos territórios conquistados à Jordânia e ao Egito em 1948, desmantelar a maioria dos assentamentos judaicos na Cisjordânia e reconhecer Jerusalém Oriental como capital do futuro Estado palestino.

Os palestinos precisam reconhecer Israel como Estado de maioria judaica e renunciar ao direito de retorno, em troca de indenizações. Qualquer pessoa minimamente razoável sabe disso e qualquer pessoa decente que esteja informada deve apoiar isto. Falar em paz sem desocupação é fraude. Mas falar em paz sem renúncia ao direito de retorno também é fraude.

Também é preciso reconhecer que esta paz já foi oferecida por Israel aos palestinos, com a proposta de Ehud Barak em Camp David (julho de 2000), do presidente americano Bill Clinton, com os chamados “Parâmetros Clinton” (dezembro de 2000), e pelo ex-primeiro ministro israelense Ehud Olmert (2008).

Todas estas propostas foram recusadas pelas lideranças palestinas, sem que fizessem nenhuma contraproposta.

À proposta de paz de Camp David, os israelenses tiveram como resposta uma intifada assassina. À desocupação de Gaza, em 2005, os israelenses tiveram como resposta a eleição do Hamas, em 2006. Foi isto que destruiu a esquerda israelense e o processo de paz, e não o assassinato de Yitzhak Rabin em 1995, como estão propalando por aí alguns charlatões.

A narrativa de uma “nakba contínua” desconsidera tudo isto e elude a necessária assunção de responsabilidades históricas passadas, bem como de responsabilidades políticas presentes.

Os intelectuais israelenses também poderiam apresentar a história de seu povo como a do sofrimento de um “terror contínuo”. Um terror que começou em 1929, com a aniquilação da antiga comunidade judaica de Hebron, e que, desde então, nunca parou.

O terror de um povo que tem metade de sua população formada por refugiados (e descendentes) dos pogroms europeus e do Holocausto, e outra metade por refugiados (e descendentes) da limpeza étnica que árabes fizeram de suas comunidades judaicas.

Este mesmo povo que, com apenas 25 anos de existência de seu Estado, já havia sofrido quatro tentativas de aniquilação por parte de seus vizinhos.

Entretanto, quando intelectuais israelenses ficam na narrativa do “terror contínuo”, colocam-se aquém de seu papel de intelectuais. Justamente porque, assim como ocorre com a narrativa da “nakba contínua”, isto é apenas parte da verdade.

Narrar o sofrimento, embora seja algo fundamental, não equivale a narrar e explicar a história. Evitar esta confusão é evitar a armadilha da vitimização, que acontece sempre quando o sofrimento é utilizado para ocultar a responsabilidade por erros e crimes que foram e estão sendo cometidos, cuja não assunção impede que o ciclo de violência interminável seja quebrado.

Pois, assim como existe um campo irredentista na sociedade israelense, também existe e sempre existiu um campo irredentista na sociedade palestina. Reconhecer isto constitui o ponto de partida incontornável para evitar que a próxima tentativa de paz fracasse como as anteriores.



Fonte.:Folha de S.Paulo

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