
Crédito, Khames Alrefi/Anadolu via Getty Images
- Author, Sarah Ibrahim, Ahmed Nour e equipe de Jornalismo Visual do Serviço Mundial da BBC
- Role, Serviço Mundial da BBC e BBC News Arabic
A população de Gaza vem sendo submetida a um desalojamento “sem precedentes” e “diferente de tudo desde a Segunda Guerra Mundial“, segundo especialistas entrevistados pela BBC. O conflito entre Israel e o Hamas completa dois anos nesta terça-feira (7/10).
Segundo as Nações Unidas (ONU), nove em cada dez dos 2,1 milhões de habitantes de Gaza fugiram de suas casas durante a guerra, que completa dois anos. As fronteiras permaneceram praticamente fechadas.
Israel ordenou várias vezes que a população deixasse áreas específicas, provocando migrações em massa. O país afirma que essas ordens fazem parte de “medidas extraordinárias” para proteger civis, já que teriam como alvo o Hamas.
Alguns grupos de direitos humanos afirmam que a situação equivale à migração forçada.
Em média, as famílias em Gaza se mudaram seis vezes durante o conflito, algumas até 19 vezes, segundo uma pesquisa do Conselho Dinamarquês para Refugiados de 2024.
Como muitos moradores de Gaza, Soha Musleh, uma enfermeira com dois filhos pequenos, foi ficando espremida em diversos lugares diferentes enquanto Israel expandia suas operações, destruindo bairros inteiros.
“O deslocamento em Gaza é diferente de tudo o que vimos desde a Segunda Guerra Mundial — não em termos de número de pessoas deslocadas, mas em termos de condições”, afirma Dawn Chatty, professora de Antropologia e Migração Forçada na Universidade de Oxford.
“Em Gaza, os palestinos não têm para onde ir. As pessoas são forçadas a fugir de um local inseguro para outro.”
Israel frequentemente envia panfletos, mensagens de SMS e comunicados nas redes sociais pedindo aos moradores de Gaza que “evacuem” áreas específicas.
Durante toda a guerra, Israel os instou a se mudarem para al-Mawasi, uma pequena área costeira arenosa com pouca estrutura que Israel designou como “zona humanitária” — mas bombardeou o local em várias ocasiões.
As Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês) disseram à BBC que os avisos de evacuação emitidos em Gaza são realizados “para proteger os civis” e que “os moradores podem evacuar para sua segurança por meio de rotas e corredores de evacuação designados”.
As forças israelenses afirmaram ainda que operam em conformidade com o direito internacional.
As IDF acusam o Hamas de “se infiltrar no ambiente civil” e diz que não tem como alvo áreas humanitárias.
Ondas de deslocamento
O impacto dessas ordens é visível em imagens de satélite, que mostram constantes mudanças na presença ou ausência de tendas e abrigos improvisados em algumas partes de Gaza.
Por exemplo, o bairro de Hamad City, próximo a al-Mawasi, começou a se encher de tendas em maio de 2024, quando foi designado como parte de uma “zona humanitária”.
Em julho daquele ano, o terreno, antes vazio, ficou densamente habitado (veja abaixo).
Desde então, Israel ordenou que os moradores saíssem dali duas vezes.
Em ambas ocasiões, a área ficou sem tendas, que depois voltaram após Israel incluí-la novamente na “zona humanitária”.
Um desses episódios ocorreu em agosto de 2024, quando as IDF disseram que uma área próxima estava sendo usada para lançar foguetes contra Israel. O outro foi cerca de um ano depois (veja abaixo).

Soha e sua família passaram perto de Hamad City na primavera (do hemisfério norte) de 2024, a caminho da vizinha Deir al-Balah.
“Às vezes, tudo o que você leva consigo é a sua vida, e então você tem que começar tudo de novo”, diz ela.
Alguns de seus oito deslocamentos ocorreram em meio a grandes movimentações da população de Gaza durante a guerra — do norte para a cidade de Khan Younis, nas primeiras semanas após o ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro; em seguida, para Rafah, no sul, até que Israel lançou uma invasão terrestre na região.
Essas ondas de deslocamento fizeram com que as populações das cidades e regiões de Gaza diminuíssem e aumentassem.
As duas províncias ao norte da faixa perderam três quartos de sua população nos primeiros quatro meses da guerra.
Rafah abrigou cerca de quatro vezes sua população pré-guerra por vários meses no início de 2024, até que Israel ordenou que as pessoas saíssem dali.
Hoje, Rafah está quase completamente destruída e poucas pessoas restam lá.
A maioria seguiu para as duas áreas centrais de Gaza, Khan Younis e Deir al-Balah, cuja população conjunta quase triplicou.

‘Presos em uma faixa fechada’
O professor Daniel Blatman, historiador especializado em Holocausto na Universidade Hebraica de Jerusalém, afirma que o deslocamento em Gaza difere de outros lugares do mundo devido ao “aprisionamento, à repetição e às condições letais”.
“Em Gaza, os civis estão presos dentro de uma faixa fechada, obrigados a se deslocar repetidamente para lugares superlotados, rotulados como ‘humanitários’, mesmo com conflitos ocorrendo nas proximidades”, afirma Blatman.
Yuval Shany, professor de Direito Internacional, também na Universidade Hebraica, afirma que a situação em Gaza é “sem precedentes” em termos da “incapacidade da vasta maioria da população civil de deixar completamente a zona de conflito”.
Ele afirma que tanto Israel quanto o Hamas “colocam em risco a população civil em suas operações”.
Para o professor, a falta de pressão internacional sobre Israel e o Egito para que abram suas fronteiras tem sido “notável”.
Norman JW Goda, professor de Estudos do Holocausto na Universidade da Flórida, afirma que esses tipos de “deslocamentos induzidos são lamentáveis”, mas acredita que “a alternativa seria os israelenses atacarem as posições do Hamas sem qualquer aviso aos civis”.
Ele afirma que “zonas seguras” precisam do consentimento de todas as partes em conflito. O Hamas “poderia ter reconhecido a zona segura” que Israel tentou estabelecer em al-Mawasi, mas “continuou a usá-la para operações”, diz.
Nos últimos meses, mais de 80% da Faixa de Gaza esteve sob controle militar israelense ou sob ordens de evacuação. Em julho, esse percentual chegou a 88%, segundo a ONU.
Em sua menor extensão, a área restante ficou equivalente a uma faixa de cerca de 9 km de comprimento e 5 km de largura.
A ONU ressalta que partes dela estão cobertas por escombros, limitando ainda mais o espaço para habitação e dificultando as condições de vida.

Os deslocados de Gaza enfrentam superlotação extrema.
As pessoas que vivem em tendas e abrigos em todo o território palestino têm, em média, meio metro quadrado de espaço coberto por pessoa, de acordo com dados de um grupo de agências que trabalham com a ONU em Gaza.
Isso equivale a 40 pessoas vivendo em um cômodo de 4m x 5m.
Enquanto cozinhas comunitárias, pontos de distribuição de água e clínicas de campanha operam na área, as agências humanitárias afirmam que é difícil acomodar a crescente demanda por serviços, acusando Israel de “obstrução sistemática” da entrada de alimentos e ajuda na Faixa de Gaza.
As IDF informaram à BBC que estão aumentando a entrega de alimentos, suprimentos médicos e equipamentos para Gaza. Além disso, enfatizaram que “a infraestrutura humanitária no sul está preparada para o tamanho populacional esperado”.

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Muitos moradores de Gaza são descendentes deles, incluindo Husam Zomlot, chefe da Missão Palestina no Reino Unido.
Ele diz que os palestinos “sabem muito bem o que aconteceu” em 1948.
“Uma vez que sejam ordenados a evacuar sob a força do exército israelense, eles nunca mais poderão voltar para suas cidades. Isso aconteceu na Nakba e é o que está acontecendo com eles novamente.”
Zomlot afirma que os israelenses “estão destruindo o que resta de Gaza” e que os deslocados em Gaza “não têm para onde retornar”.
“É um deslocamento intencional”, acrescenta.
‘Sérias dúvidas’
A organização Human Rights Watch e uma comissão da ONU que concluiu que Israel está cometendo genocídio afirmaram em relatórios que o deslocamento forçado em Gaza ocorreu de forma equivalente a um crime de guerra.
A Anistia Internacional e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) disseram à BBC compartilhar da mesma opinião.
O porta-voz do ACNUDH disse à BBC que as ordens geralmente “não atendem aos requisitos estritos de uma evacuação legal”.
Evidências disso incluem a “natureza massiva, generalizada e repetida das ordens que não respondem às necessidades militares imediatas ou à segurança dos civis” e os ataques que atingiram civis que fugiam.
Vários especialistas com quem a BBC conversou afirmam considerar os deslocamentos forçados e em desacordo com o direito internacional.
Yuval Shany concorda que há “sérias dúvidas” sobre se essas ordens atendem aos critérios legais para evacuações.
A embaixada israelense em Londres disse à BBC que rejeita categoricamente as alegações de deslocamento forçado, crimes de guerra e genocídio.
“Israel toma medidas extraordinárias para minimizar os danos, mesmo ao custo de uma surpresa militar”, afirmou.
E acrescentou que as evacuações “são temporárias e implementadas para proteger a vida civil” e estão em “estrita observância ao direito internacional humanitário”.
Israel “não tem intenção de governar Gaza”, acrescentou a embaixada.

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O exército israelense lançou sua mais recente ofensiva em Gaza em resposta ao ataque sem precedentes liderado pelo Hamas ao sul de Israel em 7 de outubro de 2023, no qual cerca de 1,2 mil pessoas foram mortas e 251 foram feitas reféns.
Desde então, mais de 66 mil pessoas foram mortas e cerca de 170 mil ficaram feridas após ataques israelenses a Gaza, de acordo com o Ministério da Saúde do território, administrado pelo Hamas. Esses dados são considerados confiáveis pela ONU.
Aproximadamente 92% das casas em Gaza, cerca de 436 mil, foram danificadas ou destruídas desde 7 de outubro de 2023, de acordo com estimativa da ONU com base em dados do Ministério da Habitação local.
Soha, seu marido e seus dois filhos agora vivem em Nuseirat, no centro de Gaza, junto com seus pais e as famílias de seu irmão e irmã. Todos ficam espremidos no apartamento de um parente, que tem apenas um quarto e está danificado.
“Estamos morando lá e nos virando. No final, é melhor do que uma barraca”, diz ela.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL