O sistema de ensino superior em Medicina no Brasil tornou-se o palco de uma discussão de competência entre o Conselho Federal de Medicina (CFM), que busca aumentar sua fiscalização sobre a formação prática, e a Associação dos Mantenedores Independentes Educadores do Ensino Superior (Amies), que acusa o Conselho de invadir as prerrogativas constitucionais do Ministério da Educação (MEC).
A controvérsia gira em torno da Resolução CFM nº 2.434/2025, editada em julho, que confere aos Conselhos Regionais de Medicina (CRMs), sob coordenação do CFM, a prerrogativa de fiscalizar campos de estágio e o poder de interdição ética das atividades médicas de ensino no campo de estágio considerado irregular.
A medida valeria apenas para faculdades particulares e permitiria a suspensão imediata da participação de estudantes em atividades práticas até que eventuais irregularidades apontadas pelos conselhos fossem sanadas. Após a publicação da resolução, a Amies protocolou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.864 no Supremo, solicitando a suspensão de toda a norma.
Na ADI, a Amies argumenta que a resolução seria inconstitucional, pois usurpa a competência legislativa privativa da União sobre diretrizes e bases da educação nacional, cria novas responsabilidades civis e obrigações sem respaldo em lei federal e afronta a autonomia universitária e a livre iniciativa.
O ministro Flávio Dino, relator do caso, acatou parcialmente o pedido e derrubou a possibilidade de interdição pelos conselhos e os dispositivos que estabeleciam direitos para os coordenadores de curso, como “remuneração justa e digna” e “acesso garantido a recursos humanos e financeiros” para a implementação das atividades práticas.
Dino considerou que o CFM “exorbitou os limites de sua competência normativa”, interferindo na organização do ensino superior, de responsabilidade do poder público, e na autonomia didático-científica das universidades.
“Não há dúvida de que o CFM e os CRMs podem e devem apontar irregularidades, mas reportando-se às autoridades educacionais competentes, conforme fixa a lei, sob pena inclusive de se gerar comandos contraditórios e insuportável insegurança jurídica”, disse o ministro.
Baixa qualidade da formação médica coloca em risco a população, diz CFM
Segundo dados do Portal e-MEC, existem 480 instituições de ensino superior com programas de medicina no Brasil, desse total, cerca de 80% são particulares. Já dados da pesquisa Demografia Médica no Brasil de 2025, elaborada pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), mostram que existem 448 cursos de graduação em medicina no Brasil.
Desse total, 126 eram de natureza pública e 322 eram de natureza privada. No entanto, o número de cursos particulares aumentou, pois novas autorizações de abertura foram concedidas pelo MEC recentemente. Segundo o levantamento, em 2025, o valor médio da mensalidade nas escolas privadas ativas chegava a R$ 10.214,21 (R$ 122.570,52 por ano). A mensalidade de menor valor encontrada era R$ 5.185,31, e a mais alta atingia R$ 15.777,76.
O médico Raphael Câmara, ex-secretário da Saúde Primária do Ministério da Saúde e conselheiro titular do CFM pelo Rio de Janeiro, afirmou que a resolução é resultado da “total inoperância do MEC” na fiscalização dos campos de estágio. Câmara ponderou que existem boas faculdades de medicina, mas apontou que outras “minimizam os gastos, maximizam os lucros” e, com isso, péssimos médicos estão sendo formados.
“Se o MEC fizesse o seu papel, não seria preciso o CFM entrar numa seara que, em princípio, não seria do CFM, mas não podemos ficar de olhos fechados para cada vez mais médicos sendo formados de forma péssima e colocando em risco a população pobre”, disse Câmara.
Em nota enviada à Gazeta do Povo, a pasta ressaltou que “tem compromisso com a formação médica de alto nível e vem implementando um conjunto de medidas para assegurar a qualidade dos cursos por meio do aprimoramento da avaliação, da regulação e da supervisão dos cursos, que se inicia já neste ano”. (Veja abaixo as medidas fixadas pelo MEC)
O advogado Esmeraldo Malheiros, consultor jurídico da Amies, ressaltou que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) determina que todos os aspectos da regulação, supervisão e avaliação do ensino superior cabem ao MEC. Ele reforçou que a associação congrega mantenedoras independentes com conceito de qualidade acima da média (conceito 4 e 5).
Em relação à suposta falta de fiscalização do poder público alegada pelos médicos, Malheiros afirmou que o caminho correto seria o CFM discutir políticas públicas com o Congresso ou o MEC, e não “invadir a competência” da pasta.
“Não é mais um boneco que está ali, mas um paciente”, diz conselheiro do CFM
O conselheiro Alcindo Cerci Neto, relator da resolução, destacou que a resolução foi elaborada com a “consciência plena de que o CFM não é o MEC” e respeitando a autonomia universitária. Para Neto, o conselho age não só considerando os direitos e deveres da categoria, mas também a segurança dos pacientes.
“Mesmo sendo um estágio, não é um boneco que está ali para ensinar o futuro médico, é um paciente… Temos o mesmo foco do Ministério da Saúde, que é a segurança do paciente, por isso fiscalizamos, não é para proteger o médico, é para proteger o paciente no ambiente que tem médicos e existe atendimento”, disse o relator da resolução.
A estratégia do Conselho foi atribuir a mesma responsabilidade técnica que um diretor de hospital tem para o coordenador do curso de medicina (que deve ser médico). Essa medida visa garantir que, se um médico não fizer um bom trabalho ao conduzir o ensino prático, também pode enfrentar um processo e ser cassado.
O CFM defende que sua atuação não é fechar a faculdade, mas proibir eticamente que médicos atuem em locais de trabalho inadequados, o que, na prática, inviabilizaria o funcionamento do curso, pois cerca de 40% da formação em medicina é composta por atividades práticas.
Responsabilidade de fiscalização
O conselho entende que tem a prerrogativa legal e ética de fiscalizar todos os locais onde se exerce a medicina, incluindo os campos de estágio. Para a Amies, os conselhos profissionais devem atuar após a formação, fiscalizando o exercício profissional, não se misturando com a regulação do ensino. A associação considera que o CFM estaria “transcendendo de sua competência” porque a atuação dos coordenadores se enquadra no campo acadêmico, e não no exercício profissional.
“Se eu disser que a segurança pública não atua para prender o ladrão, isso não me autoriza e não me legitima a ir lá e matar o ladrão… Esse argumento não é válido. Não sei se é pertinente ou não, mas, no mérito, o CFM não tem essa legitimidade [de impor regras aos coordenadores de curso] e nem isso autoriza a invasão da competência do MEC”, afirmou Malheiros.
A Amies também questionou exigências específicas, como a de que coordenadores tenham registro em todos os Conselhos Regionais (CRMs) dos estados onde há campos de estágio. Essas exigências, classificadas como “exageradas”, geram receio de que médicos se afastem da função de coordenação, podendo levar à interrupção do processo pedagógico.
O relator da resolução afirmou que o CFM agiu dentro da sua prerrogativa, pois não tratou sobre plano pedagógico, abertura ou fechamento de curso de medicina ou alterações no ato autorizativo, que corresponde à permissão formal concedida pelo MEC para que instituições ofereçam cursos de graduação em medicina.
Qualidade x lucro
Neto relatou que os conselhos recebem inúmeras reclamações de alunos de cursos particulares sobre estágios, falta de médicos, de professores e da impossibilidade de acompanhar procedimentos necessários para a formação.
O relator da resolução apontou ainda que os alunos pagam um alto valor nas mensalidades para terem cursos de qualidade e atuarem de forma responsável no atendimento a todos os pacientes, como os do Sistema Único de Saúde (SUS). “Nossa intenção não é interditar cursos, mas ter médicos bem formados”, disse.
“Nossa preocupação é evitar aluno com má formação que posso colocar em risco a vida de paciente, principalmente pacientes mais necessitados do SUS”, reforçou Francisco Cardoso, vice-corregedor do CFM.
Da parte da Amies, Malheiros destacou que, em tese, a associação e o CFM teriam o mesmo objetivo. “O Conselho faz isso [a resolução] e diz que é para preservar a qualidade. A Amies faz esta ação [no STF] justamente para defender a qualidade. Em tese, temos um objetivo comum, que é preservar a qualidade de ensino. Só que a Amies quer fazer isso no ambiente correto”, disse o advogado.
Malheiros afirmou ainda que a criação de cursos de medicina é “bastante rigorosa” e sua implementação é cara, o que leva a mensalidades altas. “A instituição tem que ter um corpo docente qualificado, com titulação de mestrado e doutorado, ter estrutura e laboratórios, um coordenador de curso [que seja] médico e uma série de outros aspectos que inclusive justificam, de certa forma, as mensalidades”, disse o advogado.
“Ofertar um curso de medicina é muito caro, porque [a instituição] tem que dar uma contrapartida para estados e municípios de 10% de todo seu faturamento, a remuneração do corpo docente de medicina é muito mais alta, a estrutura é muito mais cara”, acrescentou Malheiros.
MEC destaca Enamed e diz que Inep faz visitas em todos os cursos de medicina
O MEC reafirmou ter a atribuição de regular e supervisionar todos os cursos de graduação. A pasta detalhou que, em casos de conceitos insatisfatórios (1 ou 2) identificados pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), são aplicadas medidas corretivas.
Caso um curso mantenha o conceito insatisfatório, o MEC instaura um processo de supervisão que pode resultar em medidas cautelares, como a suspensão de ingresso de novos estudantes e, ao final, a desativação definitiva do curso.
Em resposta direta às preocupações com a qualidade da formação médica, o MEC anunciou um conjunto de medidas de aprimoramento:
- Aplicação do Enamed (Exame Nacional de Avaliação da Formação Médica) em outubro de 2025, e anualmente a partir de 2026, para monitorar o desempenho dos estudantes.
- Realização de visitas in loco do Inep a todos os cursos de medicina do país em 2026.
O MEC indicou que os resultados do Enamed repercutirão no conceito do curso, e o desempenho insuficiente levará a medidas corretivas, inclusive ao longo do curso.
De acordo com a pasta, o procedimento as medidas cautelares para cursos com desempenho insuficiente (conceitos 1 e 2) são:
- impedimento de ampliação de vagas;
- suspensão de novos contratos do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies);
- suspensão da participação no Programa Universidade para Todos (Prouni); redução de vagas para ingresso (cursos conceito 2);
- suspensão de ingresso de novos estudantes (cursos conceito 1).
“Ao final do processo de supervisão, poderão ser aplicadas penalidades de desativação definitiva do curso ou redução definitiva de vagas”, disse o ministério. O MEC afirmou que, a partir de 2026, o Enamed será aplicado anualmente ao 4º ano (pré-internato) e ao 6º ano do curso, para” acompanhamento da formação médica, garantindo mais qualidade na formação e segurança para a população”.
Cardoso reforçou que o CFM também defende o exame de ordem ou de proficiência para verificar se a pessoa que está recebendo o registro profissional tem “a mínima competência para ser médico”.
Para o vice-corregedor do conselho, “lamentavelmente, em virtude da leniência, da omissão, da procrastinação e da desídia do MEC ao longo das últimas décadas, não temos mais confiança que o aluno formado no Brasil tenha presunção de qualidade para já receber um CRM sem ser avaliado por prova”.
Decisão de Dino está em análise no STF
Apesar de suspender a possibilidade de interdição, Dino manteve o dever fiscalizador do CFM sobre os médicos e considerou plausível a exigência de que o coordenador seja médico, conforme a Lei do Ato Médico.
Além disso, o ministro manteve as normas que visam apenas à fiscalização ética e técnica da atuação profissional, como a exigência de registro dos coordenadores junto aos CRMs.
Cardoso afirmou que a decisão do relator “foi muito sensata” ao reiterar que o dever fiscalizador do CRM sobre a atuação dos médicos “não representa afronta à autonomia universitária e às prerrogativas do MEC”.
A liminar foi encaminhada para referendo dos demais ministros. A análise ocorre no plenário virtual até a sexta-feira (10). Até o momento, Dino votou, defendendo a manutenção da decisão, sendo acompanhado pelo ministro Alexandre de Moraes. Os outros magistrados não haviam votado até a publicação desta reportagem.
Fonte. Gazeta do Povo