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- Author, Julia Braun
- Role, Enviada da BBC News Brasil a Roma
Em julho, o Brasil comemorou a sua saída do Mapa da Fome, após a insegurança alimentar severa cair 85% no país em 2023.
A conquista foi celebrada intensamente pelo governo e por membros da sociedade civil – e deve ser um dos focos da participação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no Fórum Mundial da Alimentação, em Roma (Itália), na segunda-feira (13/10). O evento celebra os 80 anos da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) e reunirá autoridades de diferentes países.
A expectativa é que Lula anuncie os avanços no país e reúna mais apoio em torno da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, um tratado multilateral elaborado pelo Brasil e adotado em 2024 pelos membros do G20.
Em Roma, o presidente participa da cerimônia de abertura do Fórum e, na sequência, da reunião do Conselho de Campeões da Aliança. Lula também tem uma reunião bilateral marcada com o diretor-geral da FAO, Qu Dongyu.
Especialistas afirmam que o progresso brasileiro no combate à fome deve ser visto como algo positivo, mas ressaltam que o país ainda tem muitos desafios a serem superados na área.
Um dos obstáculos é o desperdício alimentar, um tema que está profundamente conectado à subnutrição e acesso justo aos alimentos, mas que por vezes fica de fora do debate público ou da lista de prioridades, apontam os analistas ouvidos pela BBC Brasil.
Para Maria Siqueira, cofundadora e diretora de políticas públicas no movimento Pacto Contra a Fome, o cenário de desperdício de alimentos revela uma “incoerência gravíssima” no Brasil.
“Ao mesmo tempo em que temos uma capacidade de produção que seria suficiente para alimentar toda a população, desperdiçamos parte muito importante dela”, diz.
Segundo a ONU, entre 2022-2024, 28,5 milhões de pessoas estavam em condição de insegurança alimentar no Brasil. Ao mesmo tempo, o país está nas primeiras posições do ranking global de nações produtoras de alimentos, com cerca de 1,1 bilhão de toneladas de produção agropecuária ao ano.
“Tanto o desperdício quanto a fome e a insegurança alimentar são problemas derivados da forma como organizamos nosso modelo de produção, distribuição e garantia do acesso aos alimentos, que no fim das contas fazem com que a comida seja tratada como mercadoria e não como um direito humano”, opina Siqueira.
Gustavo Porpino, pesquisador da Embrapa Alimentos e Territórios, afirma ainda que o tema deve ser levado em conta não apenas no contexto da luta contra a subnutrição, mas também quando se discute proteção ao meio ambiente.
O país produz cerca de 800 milhões de toneladas de resíduos orgânicos por ano, segundo o Plano Nacional de Resíduos Sólidos, e menos de 2% desse volume é destinado corretamente. Quando descartados em aterros sanitários ou lixões, os orgânicos emitem gases do efeito estufa e geram chorume tóxico, que contaminam o solo, a água e toda a atmosfera.
“O setor de resíduos é o segundo mais poluente em metano no Brasil, atrás apenas da agropecuária”, diz Porpino. “E o metano tem um potencial de aquecimento global 28 vezes maior do que o gás carbônico.”
E apesar do Brasil ter adotado o compromisso de reduzir entre 59% e 67% das emissões até 2035, a redução de perdas e desperdício de alimentos não é uma das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs, na sigla em inglês, ou como são chamadas as metas climáticas assumidas por cada país internacionalmente), queixa-se o especialista.
“Criar metas específicas poderia dar mais visibilidade ao tema e gerar mais ações concretas.”, afirma o pesquisador da Embrapa.
O combate ao desperdício de alimentos faz parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, que propõe reduzir pela metade o desperdício de alimentos per capita mundial nos níveis de varejo e do consumidor até 2030.
Em 2022, foram descartados no mundo 1,05 bilhão de toneladas de alimentos, segundo o Índice Global do Desperdício de Alimentos 2024 do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA).
Também de acordo com a PNUMA, o custo da perda e do desperdício de alimentos na economia global é estimado em cerca de US$ 1 trilhão.
Quão grande é o desafio brasileiro?
Os obstáculos para que o Brasil evolua na área começam já com a mensuração do tamanho do desafio.
Não há no Brasil um mapeamento oficial sobre o desperdício de alimentos que englobe toda a cadeia produtiva – ou seja, do campo à mesa dos consumidores.
Uma das mais recentes pesquisas sobre o tema é o Índice Global do Desperdício de Alimentos 2024, da PNUMA, que analisou os resíduos domiciliares de cinco regiões da cidade do Rio de Janeiro ao longo de 2023. Os resultados revelam um descarte de 94 kg de comida por pessoa no ano.

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Outro levantamento foi elaborado pelo Pacto Contra a Fome, em parceria com a consultoria Integration Consulting, em 2022. Mas o próprio instituto admite que a falta de dados completos ainda é um dos desafios no combate ao desperdício.
O Relatório Diagnóstico sobre a Fome e o Desperdício de Alimentos no Brasil (2022) aponta que das 161,3 milhões de toneladas de alimentos que o Brasil produz anualmente, 55,4 milhões são desperdiçadas por ano.
De acordo com os dados, 84% do desperdício acontece antes do alimento chegar à casa do consumidor, com 17,3 milhões de toneladas (31,2%) perdidas nas etapas de produção e colheita.

Ainda segundo o relatório, mesmo se o Brasil aumentasse a sua eficiência de aproveitamento de alimentos em 10 pontos percentuais, reduzindo o desperdício do produtor até o varejo e igualando à eficiência de um país como os Estados Unidos, que também é um grande produtor de alimentos, ainda teria cerca de 39 milhões de toneladas de desperdício por ano.
Esse volume é quase 5,4 vezes a quantidade de alimentos necessários para erradicar a fome no país por 1 ano, afirma o Pacto.
Para Gustavo Porpino, os dados reunidos pelo relatório traçam um panorama mais realista do desperdício nas casas e no setor de hotelaria brasileiro do que em áreas como agricultura e distribuição, que são mais difíceis de monitorar.
Segundo o pesquisador da Embrapa, é possível que o desperdício brasileiro seja ainda maior do que as 55 milhões de toneladas estimadas.
Para efeito de comparação, nos Estados Unidos, segundo o Departamento de Agricultura, o desperdício alimentar é estimado entre 30 a 40% do abastecimento alimentar, o que equivale a aproximadamente 103 milhões de toneladas.
Já na Alemanha, o governo calcula que cerca de 10,8 milhões de toneladas de desperdício alimentar sejam geradas todos os anos.
Como os alimentos são desperdiçados?
No campo, um dos maiores problemas é o manejo inadequado de pragas – segundo a FAO, cerca de 40% da produção agrícola global é atualmente perdida para esses tipos de surtos. Práticas de colheita ineficientes, fatores climáticos e maquinário desatualizado também estão na lista.
Erros no planejamento da safra também não são incomuns, diz Maria Siqueira, do Pacto Contra a Fome.
Outros fatores durante o pós-colheita e os processos de armazenamento e transporte também podem reduzir em muito o tempo de vida dos alimentos, levando a mais desperdício.
“O manuseio inadequado de frutas e hortaliças ainda na fazenda ou nas centrais de abastecimento, o uso de transporte e de embalagens inadequadas de madeira para frutas sensíveis, a falta de organização das sessões de hortifrútis nos pontos de vendas de supermercados, sacolões etc. Tudo isso encurta o tempo de vida do alimento”, diz Gustavo Porpino.
Os especialistas apontam ainda as exigências estéticas do varejo como mais um fator que amplia o desperdício, com frutas e verduras sendo descartados sem estarem, de fato, inapropriados para o consumo.
Na ponta final do processo, há também o desperdício nos estabelecimentos comerciais e domicílios.
Perda de oportunidades de alimentar
Segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, o desperdício não é apenas perda de comida, mas perda de oportunidades de alimentar quem tem fome.
Um dos maiores impactos diretos do cenário é o aumento nos preços, que reduz o acesso de pessoas de baixa renda a uma alimentação suficiente e saudável.
Por um lado, o desperdício reduz a disponibilidade mundial e local de alimentos. Por outro, safras perdidas ou alimentos danificados no transporte, por exemplo, obrigam produtores e distribuidores a compensar os prejuízos produzindo e transportando mais do que o necessário, o que encarece toda a cadeia.
“O prejuízo econômico sempre acaba recaindo no consumidor”, lamenta Gustavo Porpino. “Se determinados alimentos no Brasil não custam menos, isso se deve em parte às perdas e desperdícios ao longo de toda cadeia produtiva.”
Ainda segundo o pesquisador da Embrapa, os produtos perecíveis, como frutas e hortaliças, tendem a ser os mais afetados pelas perdas.

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E ainda que esses alimentos estejam disponíveis em abundância para parte da população, isso muitas vezes não acontece nos chamados ‘desertos’ ou ‘pântanos alimentares’.
Enquanto nos desertos alimentares falta acesso a alimentos saudáveis, os pântanos alimentares são regiões onde é abundante a oferta de alimentos com muitas calorias e poucos nutrientes, como os ultraprocessados.
E ter o que o comer nem sempre é sinônimo de segurança alimentar, um conceito que exige não somente a garantia de uma alimentação em quantidade suficiente, mas também nutricionalmente adequada, explicam os analistas.
Como combater o desperdício?
Conscientizar a população sobre o tema e evitar perder comida dentro de casa é só uma das estratégias apontadas para combater o desperdício de alimentos.
Para além do que acontece nos domicílios, a responsabilidade recai tanto sobre o setor público quanto sobre o setor privado, diz Maria Siqueira, do Pacto Contra a Fome.
“Lideranças no varejo, gerentes de loja e funcionários que trabalham na reposição de alimentos são responsáveis por reduzir o desperdício. No campo, o agricultor e quem faz a compra direta do agricultor, assim como os permissionários nas centrais de abastecimento, são fundamentais para estabelecer metas, mensurar e agir na redução de perdas e desperdícios”, afirma.
Siqueira explica ainda que o governo tem um papel crucial na criação de políticas públicas, arcabouço regulatório e infraestruturas necessárias para o tema avançar.
Ações como o fortalecimento dos mecanismos de acesso a crédito para agricultores, visando a melhoria de maquinário e infraestrutura no campo, e maior apoio em melhoria genética e assistência técnico-rural podem ajudar a reduzir perdas no processo de produção, diz.
Além disso, uma ampliação do arcabouço jurídico e regulatório, com a criação de mais leis, normativas, resoluções e programas com orçamento focados no desperdício podem ajudar, aponta.
Siqueira afirma, porém, que apesar de ainda haver muito espaço para melhora, o Brasil vem construindo um bom caminho nesse sentido, com a instituição da Política Nacional de Combate à Perda e ao Desperdício de Alimentos (PNCPDA), sancionada pelo presidente Lula no início do mês, e outros decretos.
A Lei 14.016, que autoriza estabelecimentos que produzem e fornecem alimentos a doar o excedente, sancionada durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), é vista como uma outra ação positiva nesse sentido pela especialista.
Gustavo Porpino ressalta ainda a importância dos governos locais participarem dos esforços, atuando no setor de hotelaria, nas escolas e centrais de abastecimento, por exemplo.
‘Alívio emergencial’
Segundo Maria Siqueira, os pesquisadores da área já tem consciência de que mesmo com a extinção do desperdício, a fome ainda existiria no país.
“A insegurança alimentar é resultado também de problemas como a pobreza e a desigualdade socioeconômica”, aponta.
“Mas temos aqui um potencial de alívio emergencial.”
A diretora do Pacto Contra a Fome explica que, de acordo com os cálculos desenvolvidos pelo movimento, das mais de 55 milhões de toneladas desperdiçadas atualmente no Brasil, algo em torno de 12 milhões poderiam ser doadas.
“São alimentos que estão próprios para consumo e poderiam estar chegando na mesa das pessoas. Mas só 1% disso está sendo redirecionado hoje.”
Gráfico por Caroline Souza, da Equipe de Jornalismo visual da BBC News Brasil
Fonte.:BBC NEWS BRASIL