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12 de outubro de 2025

STF resgata morte civil, conceito banido há séculos no Ocidente

STF resgata morte civil, conceito banido há séculos no Ocidente

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Na quinta-feira (9), a defesa do ex-deputado Daniel Silveira fez um pedido ao Supremo Tribunal Federal (STF) que soaria absurdo em qualquer democracia: que ele possa ter carteira de trabalho e conta bancária.

A situação de Silveira (conheça os detalhes abaixo), que está em regime aberto desde setembro mas mesmo assim continua impedido de dar entrevistas e ter redes sociais, não é uma exceção entre alvos de inquéritos do STF. O ex-assessor da Presidência Filipe Martins e o ex-presidente Jair Bolsonaro enfrentam restrições semelhantes, assim como diversos manifestantes do 8 de janeiro condenados pela Corte. Na prática, inimigos da Corte não têm direito à vida pública.

Em julho, ao comentar o caso de Bolsonaro, o senador Rogério Marinho (PL-RN) afirmou que certas medidas cautelares impostas pelo STF equivaliam a uma “morte civil”. Para especialistas consultados pela Gazeta do Povo, o conceito se aplica ao caso.

Na teoria do Direito, morte civil é a situação em que uma pessoa, embora esteja viva, é colocada à margem da vida jurídica e social, perdendo na prática direitos fundamentais como de expressão, trabalho e convivência pública. O próprio Estado transforma o cidadão em alguém que não pode mais existir plenamente na esfera pública.

Na França, em 1793, durante a Revolução, uma lei declarou que os franceses que fugissem do país seriam considerados mortos civis: perderiam todos os direitos e teriam os bens confiscados. Na Inglaterra dos séculos 17 e 18, existia o attainder, um ato do Parlamento que tirava todos os direitos de quem fosse condenado por alta traição. A pessoa perdia bens e deixava de existir legalmente.

Nos últimos séculos, nos sistemas jurídicos ocidentais, a figura da morte civil caiu em desuso, por ser incompatível com princípios de dignidade humana, presunção de inocência e direitos fundamentais.

“É uma prática muito antiga, de banimento, praticamente, da pessoa. É como se ela fosse extirpada da vida ainda em vida, por ser considerada indigna do convívio social”, explica a advogada Katia Magalhães, especialista em responsabilidade civil.

Para ela, a analogia entre a morte civil e o que ocorre com os alvos dos inquéritos do STF é precisa. “Essas pessoas são privadas da possibilidade de dispor do seu próprio patrimônio, têm contas bancárias indevidamente confiscadas, salário congelado. A gente cansa de ver esse tipo de caso. É uma forma de morte civil. A pessoa não pode dispor dos próprios bens, sem estar falida, porque um determinado juiz da Suprema Corte assim deliberou, sem o devido processo legal.”

O banimento digital é mais uma ruptura de direitos fundamentais que deixa a analogia com a morte civil pertinente, afirma a jurista. “Hoje a gente sabe que a nossa vida social é, em boa medida, a vida nas redes. Essa pena não existe em lei, porque não existe no Código Penal de jeito nenhum, não existe no Código de Processo Penal. Não há a possibilidade, à luz da Constituição brasileira, de banir pessoas das redes, porque isso é censura prévia. Mas, ainda assim, eles impõem essa forma de morte”, diz.

“Uma pessoa que não tem a disposição dos seus bens, do seu patrimônio, e que não tem a disposição da sua palavra, das suas opiniões, é morta em vida, praticamente enterrada viva”, acrescenta.

Outras medidas cautelares tomadas contra investigados são atributos de uma morte civil, como a restrição a receber visitas e a proibição de dar entrevistas.

Um professor de Direito que falou com a reportagem sob condição de anonimato concorda que o instituto da morte civil se aplica ao que o STF faz.

“Impedir o Filipe Martins de ser filmado e fotografado… Isso é totalmente ilegal e não acontecia nem em regime de exceção. Que eu saiba, nunca tinha acontecido no Brasil”, afirma. “Nem o AI-5 previa isso. Durante a ditadura, os presos davam entrevista, inclusive dentro do cárcere. Um exemplo famoso é o do Nelson Rodrigues Filho, que deu entrevista de dentro da cadeia. Presos por crimes violentos durante a ditadura militar davam entrevistas.”

O professor ressalta que, além de matar civilmente alguns dos investigados, o STF os torna tóxicos para pessoas próximas. “É a figura da transcendência penal, que é quando você aplica a pena a parentes, ou medidas cautelares contra parentes – filhos, irmãos –, contra pessoas que não têm nada a ver com o processo criminal. Elas não podem se defender e têm suas vidas alteradas, destruídas, simplesmente por serem parentes de alguém que está sendo investigado”, diz.

Após sair da prisão, Daniel Silveira segue sob morte civil, sem direito a trabalhar, se expressar e ter conta bancária

O caso do ex-deputado Daniel Silveira ilustra como decisões do STF têm gerado efeitos práticos semelhantes aos da antiga morte civil.

Mesmo após sair da prisão, ele continua impedido de exercer direitos básicos: não consegue emitir carteira de trabalho nem abrir uma conta bancária para receber salário, devido a restrições atreladas ao seu CPF que persistem nos sistemas públicos, de acordo com sua defesa. Isso o impossibilita de formalizar vínculo empregatício e reiniciar a vida profissional, apesar de já ter sido contratado por um escritório de advocacia.

Sua liberdade de circulação também permanece limitada por decisões judiciais, que restringem deslocamentos mesmo para fins de trabalho. Além disso, ele está proibido de conceder entrevistas e foi banido das redes sociais.

Na petição apresentada ao STF na quinta-feira, a defesa afirma que medidas cautelares estão impedindo Silveira de garantir sua subsistência e violam sua dignidade.

Para o advogado Paulo Faria, que trabalha na defesa de Silveira, a figura da morte civil se aplica “sem dúvidas” ao caso de seu cliente. “É uma tática de aniquilar o inimigo. Sufocá-lo. É a maléfica força do Estado, com abuso de poder e autoridade. Prática ilícita”, diz.



Fonte. Gazeta do Povo

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