Enfrento o câncer de mama pela sexta vez. Já se passaram mais de vinte anos desde o meu primeiro diagnóstico. Nesse tempo, vivi tudo: cirurgias, quimioterapia, hormonioterapia, imunoterapia, terapias modernas e, principalmente, longas esperas.
Aprendi que a luta não é só contra o tumor. É também contra o preconceito e, no Brasil, contra uma dura realidade: quem é tratado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ainda tem muito menos chance de cura do que quem tem plano de saúde.
A medicina avançou muito. Hoje temos diagnósticos mais precisos, cirurgias menos invasivas, terapias-alvo e medicamentos que aumentaram consideravelmente a sobrevida.
Nos Estados Unidos, a taxa de mortalidade por câncer de mama caiu quase pela metade desde a década de 1970, passando de 48 mortes por 100 mil mulheres em 1975 para 27 em 2019, segundo estudo publicado no Journal of the American Medical Association.
No Brasil, também houve progresso: de acordo com dados do Instituto Nacional de Câncer (INCA) e do estudo internacional Concord-3, a sobrevida em 5 anos ficou em torno de 76% nos últimos anos.
Em hospitais de ponta, como o A.C. Camargo Cancer Center, os resultados são ainda mais impressionantes: 98,7% de sobrevida em 5 anos quando a doença é descoberta em estágio inicial e, nos casos avançados, a sobrevida mais que dobrou em vinte anos, passando de 20,7% em 2000 para 40,8% em 2020.
O abismo entre o SUS e a rede privada
Mas essa não é a realidade de todas as brasileiras. Um estudo multicêntrico nacional publicado na PubMed Central mostrou que a sobrevida em 5 anos chega a 80,6% para quem tem plano de saúde, mas cai para apenas 68,5% entre as pacientes do SUS.
O motivo? Diagnóstico mais tardio e atraso no início do tratamento. O estudo revelou que a maioria das mulheres da rede privada descobre o câncer ainda no estágio I, enquanto no SUS o diagnóstico costuma ocorrer apenas no estágio III, quando a doença já está mais avançada e as chances de cura são menores.
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Baixa cobertura e atrasos no tratamento
A situação se agrava porque a cobertura de mamografia no SUS não passa de 35% em nenhum estado brasileiro, segundo o Instituto Nacional de Câncer.
E mesmo após o diagnóstico, muitas mulheres enfrentam atrasos: em 2022, 59% das pacientes oncológicas não iniciaram a terapia dentro do prazo legal de 60 dias, de acordo com o Painel Oncologia do Ministério da Saúde.
Muitas esperam mais de 90 dias, tempo suficiente para que o tumor avance. Enquanto isso, medicamentos modernos como os inibidores de CDK4/6, que mudaram a vida de pacientes na rede privada, ainda enfrentam demora para serem incorporados e distribuídos no SUS, mesmo após aprovação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec).
Outro avanço importante da medicina, ainda pouco acessível no Brasil, é a imunoterapia. Esse tipo de tratamento estimula o próprio sistema imunológico do paciente a reconhecer e combater as células tumorais.
No câncer de mama triplo-negativo metastático, por exemplo, medicamentos como o atezolizumabe e o pembrolizumabe, já aprovados em diversos países, têm mostrado resultados significativos: aumentam a taxa de resposta, prolongam a sobrevida livre de progressão e, em alguns casos, ampliam a sobrevida global em comparação à quimioterapia isolada.
Mas no Brasil, o acesso a essas terapias inovadoras ainda é limitado, o que mantém uma distância injusta entre as brasileiras tratadas na saúde pública e aquelas atendidas na rede privada.
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Por um SUS mais forte e igualitário
Eu sei o quanto o câncer abala a autoestima, a carreira, os sonhos. Mas também sei que informação, prevenção e tratamento adequado podem mudar o rumo dessa história.
O SUS é um patrimônio brasileiro, mas precisa ser fortalecido, fiscalizado e atualizado para que todas as mulheres tenham a mesma chance de viver — com acesso a exames, início rápido do tratamento e às terapias modernas, incluindo as novas imunoterapias. Não podemos aceitar que a diferença entre viver e morrer dependa do tipo de atendimento que a mulher recebe.
O Outubro Rosa fala de prevenção, mas também precisa falar de justiça social, empatia e dignidade. Informação salva vidas. E dignidade mantém essas vidas de pé.
*Valéria Baracatt é psicóloga, jornalista e fundadora do Instituto Arte de Viver Bem.
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Fonte.:Saúde Abril