Tsai Ming-Liang só precisa de uma câmera qualquer e de um cenário a sua escolha. Os custos de grandes sets de filmagem, o desenvolvimento de personagens e até mesmo o desenrolar de uma história, estes não são prioridades para o cineasta malaio-taiwanês. Nome habitual da Mostra Internacional de São Paulo, ele retorna para a 49ª edição com “De Volta para Casa”.
Com pouco mais de uma hora, o documentário segue a viagem do ator Anong Houngheuangsy ao vilarejo em que nasceu no Sudeste Asiático, no Laos. Entre colheitas, feiras e aglomerações que aparecem pela estrada, a câmera prioriza as casas rurais, a terra remexida e outros vestígios dos que passaram por ali. O diretor se interessa menos pela presença humana do que por seu legado simbólico e material.
Seu trabalho é assim há tempos. Seja pela saga “Walker” —que em 2024 teve seu décimo episódio exibido no evento, com o nome “Permanência em Lugar Nenhum”—, seja por títulos mais populares como “Adeus, Dragon Inn” —em que o interior de uma sala de cinema convida à contemplação—, as atmosferas sensoriais parecem ser o objetivo e a ficção e o documental sempre se misturam.
Interligada pela mesma figura, “Walker” acompanha um monge interpretado por Lee Kang-Sheng. Apesar da brevidade comum aos filmes de Ming-Liang, o andarilho anda em uma velocidade incrivelmente baixa e obriga o espectador a repensar sua relação com as imagens. O trajeto percorre lugares públicos e grandes monumentos e exige paciência dos que se candidatam para a caminhada.
“De Volta para Casa” tem uma proposta parecida. No entanto, não é a figura humana que conduz a percepção da plateia. Os estímulos da vez são as vozes ao fundo, o barulho de carros que nunca entram em tela, as músicas de dentro das residências e o canto dos pássaros que escapam à captação.
No começo, casas são intercaladas pela montagem, capturadas por diferentes ângulos e perspectivas. Ming-Liang esgota as formas de gravar esses espaços, diversas em tamanhos, cores e estados de preservação. Ele une temporalidades e convida quem vê a imaginar detalhes desses pequenos universos.
Na metade restante, o cineasta se aventura pelo interior de residências. Porta-retratos, livros e móveis guardam memórias de familiares e amigos de Houngheuangsy. Mesmo nas raras passagens em que estes aparecem, as conversas não guiam cenas e os corpos estão sombreados ou virados contra o espectador.
Resta, assim, filmar estátuas. Próximo ao final, Ming-Liang dedica vários minutos a ícones religiosos que encontra pelo caminho. Em determinado momento, mostra inclusive como esses ícones são construídos. É como se ele confessasse a humanidade que existe por trás dos símbolos de sua filmografia.
“Meus filmes são como um sonho, quando filmo é como se estivesse filmando um sonho”, disse ele à Folha sobre “Dias”, exibido durante a edição online da Mostra que aconteceu em 2020, na pandemia. É o tipo de descrição que também cabe à “De Volta para Casa”.
Fonte.:Folha de S.Paulo