No dia 16 de abril, o 1º Distrito Policial de Guarulhos recebeu uma denúncia que parecia rotineira: um bolo supostamente envenenado havia sido deixado em uma sala da Universidade de Guarulhos, acompanhado de um bilhete.
Duas alunas estariam sendo ameaçadas, entre elas a estudante de direito Ana Paula Veloso Fernandes, de 36 anos. Semanas depois, Ana Paula se tornaria suspeita de ser uma serial killer.
O bolo foi recolhido pela Polícia Civil e enviado para perícia. Mas as câmeras de segurança da faculdade não registraram ninguém entrando com o pacote, o que levantou a suspeita de que quem o deixou ali conhecia bem o campus.
Foi outro detalhe, no entanto, que chamou a atenção dos investigadores: Ana Paula, até então vítima das ameaças, passou a frequentar a delegacia com insistência.
“Ela alegava que havia alguém a perseguindo, que essa pessoa possivelmente teria enviado o bolo e que poderia estar envolvida na morte de uma amiga dela, ocorrida dias antes”, relatou o delegado Halisson Ideiao Leite, responsável pela investigação.
O escrivão Rafael Vello também achou a situação fora do comum. “Não é normal que uma vítima procure tantas vezes a delegacia. Ele teve esse feeling logo no início”, contou o delegado.
“O conhecimento que ela demonstrava, mesmo sendo apenas estudante, e a preocupação exagerada chamaram a atenção do escrivão.”
A partir daí, os policiais passaram a observar Ana Paula mais de perto. “Passamos a ter mais cuidado, pois sabíamos que poderíamos estar diante de alguém que havia forjado o episódio do bolo”, disse o delegado.
Até que os detalhes da investigação começaram a aparecer. O número de telefone usado para enviar mensagens ameaçadoras a Ana Paula e à colega havia sido registrado em nome de uma amiga dela um dia antes desta amiga morrer. A coincidência fez a polícia voltar a olhar para este caso.
Maria Aparecida Rodrigues havia conhecido Ana Paula pela internet. Sua morte, em 11 de abril, foi registrada primeiramente como “natural”. Mas a polícia descobriu que Ana Paula foi uma das últimas pessoas a estar com ela.
No inquérito, há também o relato de que Maria Aparecida esteve na casa de Ana Paula, onde comeu bolo e tomou café antes de morrer.
Os investigadores intensificaram o monitoramento da estudante, mas tomando cuidados para que ela não percebesse que era investigada.
“Em nenhum momento, comunicamos nossas suspeitas ou indagamos dela. Tentamos deixá-la à vontade e deixá-la próxima para que a gente não perdesse essa possibilidade se, eventualmente, as suspeitas que a gente tinha se confirmassem”, continua o delegado.
Dias depois, Ana Paula voltou à delegacia. Desta vez, para registrar uma nova denúncia – contra um coordenador da faculdade.
“Ela apresentou mais uma queixa aparentemente falsa”, conta o delegado.
“Quando foi embora, decidimos fazer uma pesquisa mais detalhada em sistemas policiais. Foi quando percebemos que ela aparecia em outros casos de morte.”
Novas mortes
A busca revelou dois boletins de ocorrência anteriores em que o nome da estudante estava citado.
O primeiro, de 31 de janeiro, relatava a morte de Marcelo Hari Fonseca, dono de um imóvel em Guarulhos, onde Ana Paula alugava os fundos. Ele foi encontrado morto após comer um sanduíche.
Segundo o relatório policial, Ana Paula confessou ter matado Marcelo após uma discussão e, em seguida, queimou o sofá onde o corpo foi achado, destruindo possíveis vestígios.
O segundo boletim, de 23 de maio, dizia respeito à morte de Hayder Mhazres, um tunisiano de 21 anos que havia conhecido Ana Paula por um aplicativo de encontros.
Ele morreu após tomar um milkshake. A estudante também foi quem chamou o socorro e informou o endereço errado do local, o que dificultou o trabalho da polícia.
“Neste momento, tivemos a certeza absoluta que não se tratavam de terríveis coincidências, mas que ela teria efetivamente participado da morte deles”, afirma o delegado.
“Seria impossível uma pessoa estar presente em tantos casos de óbito sem que ela tivesse culpa naquelas mortes”, continua.
“Tínhamos a certeza de que se tratava de uma pessoa que estava matando. E isso se tornou, na verdade, uma luta contra o tempo. Tínhamos um tempo escasso, pois sabíamos que ela poderia voltar a matar.”
Em julho, a Polícia Civil pediu à Justiça a prisão temporária de Ana Paula e uma operação de busca e apreensão em sua casa.
No local, os agentes encontraram um frasco de terbufós, um composto químico altamente tóxico usado na agricultura e frequentemente associado a envenenamentos.
“Conseguimos efetivamente confirmar o envolvimento dela em todos os três crimes, não só nos três crimes, mas também, por meio de extrações dos celulares apreendidos, conseguimos identificar um quarto crime.”
O quarto crime citado pela polícia ocorreu no Rio de Janeiro. A vítima, Neil Corrêa da Silva, de 65 anos, pai de uma amiga de Ana Paula, morreu em 26 de abril, após comer uma feijoada preparada pela investigada.
Segundo o inquérito, mensagens de áudio e texto recuperadas dos celulares mostram que Ana Paula teria recebido ajuda de sua irmã gêmea, Roberta Veloso Fernandes.
Nas conversas, elas falavam dos assassinatos por “código”: chamavam de “TCC”, sigla normalmente usada para se referir aos trabalhos de conclusão de curso de uma faculdade.
As mensagens indicavam planejamento e até a sugestão de que Ana Paula começasse a cobrar pelos TCCs, no mínimo, R$ 4 mil e em dinheiro vivo.
‘Sem inteligência para ser serial killer’, diz defesa
A Polícia Civil indiciou Ana Paula por quatro homicídios qualificados, que são considerados mais graves por envolverem maior crueldade —pelas mortes de Marcelo Hari Fonseca, Maria Aparecida Rodrigues, Neil Corrêa da Silva e Hayder Mhazres.
O relatório da polícia afirma que Ana Paula “apresenta-se como uma criminosa contumaz, (…) com alto grau de frieza”, e que sua liberdade representaria “ameaça concreta à ordem pública”.
Por isso, sua prisão temporária foi convertida em preventiva. A investigação também apura a possível participação da irmã gêmea de Ana Paula e de Michelle Corrêa da Silva, filha de Neil, suspeita de ser mandante da morte do pai.
“A Ana Paula é uma serial killer”, diz o delegado.
“É uma pessoa que é bastante fria com relação às mortes. Ela realmente não demonstra nenhum tipo de arrependimento e ela é uma pessoa muito manipuladora.”
Mas o advogado Almir Sobral, que defende as irmãs, afirma que Ana Paula não tem o perfil de uma assassina em série.
“O serial killer, segundo estudos, planeja, analisa e existe uma logística e a execução é bem manipulada. Ana Paula não tem inteligência para ser uma serial killer.”
A defesa elogiou o trabalho da Polícia Civil, mas afirmou que conduz uma investigação paralela e está preocupada com a forma como o caso tem sido divulgado na imprensa.
“Começamos a apuração porque existem muitas ocorrências e muitas testemunhas dizendo coisas que não procedem. Os fatos não são exatamente como estão sendo apresentados. Há distorções que precisam ser analisadas no decorrer do processo”, afirmou.
Segundo ele, as provas ainda estão em fase de conclusão, e por isso não se pode “crucificar” as irmãs antes do fim das perícias.
“Os corpos ainda estão sendo exumados. Só depois disso será possível confirmar se houve ou não ingestão de veneno”, argumentou.
Sobre a irmã de Ana Paula, o advogado nega qualquer envolvimento nos crimes.
“Ela jamais conheceu o senhor Neil, nunca falou com Michelle e nem teve contato com nenhuma das vítimas. Estão tentando vincular a Roberta a esse homicídio apenas porque ela trocava WhatsApp e ligações telefônicas com a irmã”, disse.
Em depoimento à Polícia Civil, Ana Paula confessou ter matado Marcelo Hari Fonseca e Neil Corrêa da Silva, mas negou envolvimento nas mortes de Hayder Mhazres e Maria Aparecida Rodrigues.
Sobral relativiza as declarações de Ana Paula dadas à polícia e não considera suas falas como uma confissão formal. “A defesa, tecnicamente, não encara isso como uma confissão.”
Mas ele reconhece que a cliente pode ter envolvimento nos casos.
“Eu não digo que ela é inocente dos quatro casos. Também não digo que ela participou ativamente desses quatro casos. Talvez tenha mais pessoas envolvidas. São fatos que tento apurar.
Este texto foi publicado originalmente aqui.
Fonte.:Folha de S.Paulo