7:11 PM
25 de outubro de 2025

Cuidados paliativos: um caminho para uma cardiologia mais humanizada

Cuidados paliativos: um caminho para uma cardiologia mais humanizada

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Apesar das benesses que os cuidados paliativos (CP) podem oferecer a pacientes com doenças cardiovasculares irreversíveis, a requisição deste tratamento não é uma prática habitual em cardiologia. Mas pode fazer muita diferença, principalmente quando se trata de internados por condição grave, como a insuficiência cardíaca (IC).

A tese de doutorado “Impacto da ação de um médico cardiologista, especialista em cuidados paliativos, para pacientes internados com insuficiência cardíaca avançada”, baseada em minha experiência em um dos mais reconhecidos hospitais para atendimento cardiológico do país, provou benefícios ao promover processos que alavancaram a inserção dos cuidados paliativos para portadores de IC.

Cuidados paliativos abarcam abordagens multidisciplinares voltados a diminuir o sofrimento de pacientes e familiares diante de doenças graves e ameaçadoras à vida. Têm como objetivo o controle de sintomas, independentemente do prognóstico.

A insuficiência cardíaca (IC) é um exemplo de patologia sem cura e considerada uma das principais causas de morbidade e mortalidade cardiovascular. Em estágios adiantados, é responsável por limitação da capacidade funcional, além de fomentar abalo psicológico, acarretando depressão, ansiedade e medo da morte. Em 2024, o Brasil registrou mais de 202 mil internações por IC.

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Por que precisamos de cardiologistas especializados em cuidados paliativos

A tese analisou como a inclusão de um cardiologista especialista em CP na equipe de interconsulta pode influenciar no referenciamento e desfechos clínicos de internados por IC descompensada.

A interconsulta ocorre quando o médico da especialidade solicita a avaliação e o parecer de um colega de profissão para auxiliar no diagnóstico, tratamento ou manejo de um paciente.

A conclusão foi que essa introdução aumenta significativamente a taxa de encaminhamentos para a terapia: na instituição em questão, as interconsultas foram de 14,5% para 38,3% após a presença do profissional capacitado.

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A integração do paliativista em cardiologia contribui também para uma mudança cultural institucional, transformando a indicação para cuidados paliativos em prática comum na gestão da insuficiência cardíaca. Além disso, ajuda a desconstruir barreiras equivocadas sobre CP, incentivando a aceitação e utilização.

Não apenas para os dias finais

A desmistificação dos cuidados paliativos é o primeiro passo para que pacientes com patologias irreversíveis possam se valer dos benefícios do tratamento. Há uma necessidade de desvincular esta terapia de uma espécie de extrema-unção. Os CP devem chegar o quanto antes para trazer bem-estar para quem enfrenta certos males.

A tese mostrou que o tempo médio entre a solicitação de interconsultas e o óbito variava entre sete e oito dias, o que reforça a percepção de que o reconhecimento da necessidade de avaliação de um especialista em cuidados paliativos ocorre de forma tardia, geralmente quando o paciente já se encontra em fase final de vida.

No período de observação, cerca de metade dos que faleceram por IC haviam passado por paliativos. Os resultados sugerem que os cuidados frequentemente estavam ausentes ou eram implementados nas horas ou dias finais.

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Na prática

Uma vez que o médico paliativista está habilitado a promover melhoria da qualidade de vida daqueles com doenças graves e que ameaçam a vida, sua atuação é bem-vinda quando falamos de pacientes com insuficiência cardíaca.

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Na vivência que gerou minha tese, mais da metade dos internados tinham ao menos um sintoma compatível com cuidado paliativo. Também mais de metade necessitava de comunicação mais clara e afável, incluindo reuniões em família.

Além disso, perante o olhar paliativista, vários tinham indicação de sair da UTI ou do pronto-socorro para serem alocados em enfermaria de CP, a fim de receber tratamento mais focado em conforto e feito por especialistas. Dessa forma, os que fatalmente morreriam estariam em ambiente de maior acolhimento, próximos a familiares e com mais dignidade.

Embora a participação de especialistas em CP na construção do projeto terapêutico do paciente seja desejável, a participação dos paliativistas na tomada coletiva de decisão difíceis somente acontecia em apenas 43% dos casos.

A Documentação de plano de cuidados é um dos itens que deveria contar com o principal interessado. Trata-se do registro formal dos desejos, limites e preferências a respeito do próprio tratamento, incluindo se quer ou não reanimação, quais tipos de suporte aceita — ventilação mecânica, hemodiálise etc. — e onde prefere passar os últimos dias — hospital, casa, enfermaria.

Essa informação serve de norteamento para a equipe médica guiar o tratamento, para que esteja alinhado ao melhor interesse do paciente.

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Após a introdução do profissional de CP nos trâmites, o percentual dos que foram envolvidos no processo aumentou. Também houve maior proporção de acompanhamento por paliativistas após a alta hospitalar em pacientes que receberam esses cuidados ainda no hospital.

Essas manifestações ocorreram depois de esclarecimentos sobre condutas no pós-alta que garantem continuidade dos CP, com programas ambulatoriais ou domiciliares, como manejo de dores, apoio emocional, acompanhamento da evolução e planejamento de próximas etapas. Tais ações contribuem para uma excelência assistencial subjetiva, eficiente e adequada às necessidades daqueles com IC avançada.

Vale lembrar que a tomada de decisão antecipada, fora de um contexto crítico, traz uma definição mais clara dos valores e objetivos do enfermo, minimizando a influência de fatores psicoemocionais comuns na iminência da morte, como tristeza e medo.

O estudo mostra que a participação do cardiologista paliativista na rotina das equipes de cardiologia não só amplia o acesso a CP, mas aprimora a atenção aos pacientes, possibilitando um plano terapêutico mais assertivo, com alívio de sintomas e suporte emocional, inclusive para as famílias.

Vivemos tempos em que drogas e tratamentos promovem a longevidade mesmo frente a doenças graves. Mas, como médicos, não devemos nos abster de pensar também na qualidade dessa vida que se prolonga.

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A tese mostra que há um norte a seguir para conquistar este propósito. Como profissional da área, meu desejo é que essa experiência seja replicada em outros hospitais em prol de uma medicina verdadeiramente humanizada, especialmente no momento da finitude.

Como um dia escreveu a poetisa norte-americana Maya Angelou: “as pessoas podem esquecer o que você disse ou fez, mas nunca esquecerão como as fizeram sentir”.

*Daniel Dei Santi é cardiologista e coordenador do Grupo de Estudos de Cuidados Paliativos da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp). 

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Fonte.:Saúde Abril

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