
Crédito, Museu da Bíblia, Washington DC (EUA)
- Author, Juan Francisco Alonso
- Role, BBC News Mundo
“O Senhor, Deus dos hebreus, me enviou para dizer-te: deixa ir o meu povo, para que me sirva no deserto.”
O pedido de Moisés ao faraó Ramsés (Êxodo 7:16) foi o primeiro impulso para que o governante egípcio libertasse os israelitas escravizados e permitisse que eles seguissem para a terra prometida.
Os eventos sobrenaturais, como as 10 pragas do Egito e a travessia do Mar Vermelho, transformaram esta história em uma das mais conhecidas da Bíblia, muito antes que Hollywood a levasse para a tela grande, no filme Os Dez Mandamentos (1956).
Mas, entre o final do século 18 e o início do século 19, foi publicada uma versão do texto sagrado que não incluía o relato da libertação do “povo escolhido por Deus”, narrado no Êxodo, além de outros trechos que condenam a escravidão e a opressão das pessoas.

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Versão para escravizados e senhores
“Partes selecionadas da Santa Bíblia, para uso dos escravos negros, nas Ilhas das Índias Ocidentais Britânicas” era o título oficial do livro publicado em Londres, no ano de 1807.
Mas, com o passar do tempo, os historiadores rebatizaram o texto como a “Bíblia dos escravos”.
Esta versão foi editada pela chamada Sociedade para a Conversão dos Escravos Negros, uma organização de missionários da Igreja Anglicana (a Igreja da Inglaterra), dedicada a evangelizar as pessoas trazidas da África e escravizadas para trabalhar nas plantações das colônias britânicas do Caribe e, possivelmente, também da América do Norte.
Mas tudo sem questionar o sistema escravagista.
“Esta versão da Bíblia é um texto extensamente editado, com o propósito de manter o controle dos escravizados”, declarou à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC) o teólogo britânico Robert Beckford.
“É um texto que suprimiu cerca de 90% do Antigo Testamento e 60% do Novo Testamento”, explica ele.
Beckford é professor de Justiça Racial da The Queen’s Foundation de Birmingham, no Reino Unido, um centro encarregado da formação das novas religiosas e religiosos anglicanos.
“Toda a história de Moisés e da libertação dos israelitas do Egito foi eliminada , bem como todas as passagens que abordavam a liberdade ou a libertação humana. Um exemplo foi a exclusão da carta em que o apóstolo Paulo diz: ‘Não pode haver […] escravo nem liberto; porque todos vós sois um em Cristo Jesus’ [Gálatas 3:28].”

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Em termos similares se pronunciou Anthony Schmidt, diretor de Coleções do Museu da Bíblia de Washington, nos Estados Unidos.
O museu exibiu, em 2017, um dos poucos exemplares da “Bíblia dos escravos” que sobreviveram até os nossos dias.
“Era uma Bíblia abreviada, que teve grandes partes eliminadas e era dirigida a um público específico”, segundo Schmidt, que também é especialista em religião da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos.
Schmidt declarou que esta prática foi comum ao longo da história.
“Temos outras bíblias abreviadas, que foram editadas para que fossem mais digeríveis para certos públicos”, ele conta. “Temos, por exemplo, algumas destinadas a crianças, que tiveram os textos substituídos por ilustrações.”
Mas o estudioso reconhece que este caso é diferente.
“Os responsáveis pela edição tinham a intenção de manipular as pessoas escravizadas, possivelmente por acreditarem que histórias como a de Moisés causam tanto impacto que poderiam levar a uma rebelião”, explica Schmidt.
Ele também afirma que os responsáveis por esta versão não revisaram a Bíblia linha por linha, para definir quais textos ficariam e quais seriam excluídos.
“Eles não eliminaram palavras ou frases, mas sim passagens e livros inteiros que não consideravam essenciais”, prossegue Schmidt. “Eles retiraram, por exemplo, a maior parte do livro do Êxodo, mas mantiveram as referências a Moisés que aparecem em outros textos bíblicos.”
Uma edição típica da Bíblia protestante contém 66 livros. A versão católica inclui 73 e uma tradução ortodoxa oriental é composta por 78 livros.
Mas a “Bíblia dos escravos” contém apenas cerca de 14 livros, segundo o Museu da Bíblia de Washington.

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Sem perder o contexto de vista
Para Beckford, o momento histórico em que surgiu a “Bíblia dos escravos” é outra prova de que seu propósito era garantir o controle da população escravizada nas colônias britânicas.
“Ela foi publicada em 1807 e, em março daquele ano, o Parlamento britânico proibiu o comércio de pessoas escravizadas no Império”, destaca o teólogo. “Mas a escravidão, como sistema, foi mantida por mais 30 anos.”
“Como manter os escravizados nas plantações?”, questiona ele. “Além da violência, que era parte integrante da escravidão, era necessário um marco ideológico.”
“Servos, obedecei a vossos senhores com temor e tremor, na sinceridade de vosso coração, como a Cristo” (Efésios 6:5). Esta passagem da carta do apóstolo Paulo aos Efésios é um dos textos favoráveis à escravidão que podem ser encontrados naquela versão.
“A ideia era corromper a Bíblia para que ela servisse ao terror racial, sugerindo aos africanos escravizados que Deus apoiava sua situação infra-humana”, explica Beckford.
Já Schmidt também acredita que esta versão da Bíblia tenha sido reflexo do contexto da época.
“Ao longo do século 18, alguns cristãos se preocuparam com o bem-estar espiritual das pessoas trazidas da África”, prossegue ele, “mas os donos das plantações se opunham à sua evangelização, pois receavam que fosse uma ameaça para sua autoridade.”
“Para vencer a oposição dos senhores de terras, os missionários anglicanos defendiam que converter os escravizados ao Cristianismo os tornaria melhores, pois ensinaria a eles a obediência”, destaca o diretor de Coleções do Museu da Bíblia de Washington.

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O papel da Igreja Anglicana
A participação da Igreja da Inglaterra na escravidão foi historicamente comprovada.
Uma de suas organizações, a Sociedade para a Propagação do Evangelho no Exterior, por exemplo, chegou a atuar na plantação de Codrington, em Barbados. Nela, trabalharam centenas de africanos escravizados, segundo Beckford.
Em 2023, após uma investigação interna, o então arcebispo da Cantuária e hierarca máximo da Igreja Anglicana, Justin Welby, admitiu as relações da instituição com o tráfico de pessoas da África.
Entre as “ações para enfrentar este vergonhoso passado”, Welby anunciou a doação de US$ 135 milhões (cerca de R$ 737 milhões) para financiar projetos em comunidades “historicamente prejudicadas” pela escravidão.
Mas Schmidt acredita que o fato de que a “Bíblia dos escravos” tenha sido editada por uma organização ligada ao bispo Beilby Porteus (1731-1809), um dos primeiros líderes anglicanos a condenar publicamente a escravidão, revela que a instituição procurava reformar e até eliminar esta prática.
“Os missionários tinham visão progressista”, segundo o especialista. “Eles queriam melhorar as condições de vida dos escravizados, reduzir sua carga de trabalho, oferecer assistência médica e proibir que suas famílias fossem separadas.”

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Mas ele reconheceu que não existem registros de que os religiosos tenham defendido a eliminação imediata da escravidão.
“Acredito que seu objetivo fosse que ela ocorresse gradualmente, em uma ou duas gerações”, explica Schmidt.
Beckford mantém opinião similar. Ele indica que a Igreja Anglicana da época defendia a chamada “escravidão cristã”.
“A escravidão cristã foi uma tentativa de manter o sistema escravagista, fazer com que os africanos escravizados fossem melhores e, com o tempo, reformar o sistema e eliminá-lo”, resume o professor.
Em relação ao impacto causado por aquela Bíblia, os estudiosos consultados reconhecem que as evidências documentais existentes comprovam apenas o uso do controvertido texto nas plantações de cana-de-açúcar nas colônias britânicas do Caribe.
Mas tanto Beckford como Schmidt admitem ser grande a possibilidade de que ela também tenha sido empregada nas fazendas de algodão localizadas no que hoje constitui o sul dos Estados Unidos.

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E a Igreja Católica?
Teria a Igreja Católica também tido uma “Bíblia dos escravos”?
A resposta é “não”, segundo o professor de História da Igreja Jesús Folgado, das Universidades Comillas e San Damaso, na Espanha.
“Os textos bíblicos suprimidos pela Igreja Anglicana para bendizer a escravidão foram os mesmos que diversos papas e líderes de diferentes congregações religiosas na Europa utilizaram para condená-la”, acrescenta o professor, que também é sacerdote e doutor em Teologia.
Em 1537, o papa Paulo 3° (1468-1549) publicou a bula Sublimis Deus. Nela, ele declarou:
“Todos os homens, de todas as raças, deverão gozar de liberdade e ser senhores de si próprios, não sendo permitido a ninguém reduzi-los à escravidão.”
Anos depois, o papa Urbano 8° (1568-1644) ameaçou de excomunhão todos os católicos que escravizassem outra pessoa.
Mas esta postura da alta hierarquia da Igreja Católica não impediu que a escravidão fosse praticada nas colônias espanholas, portuguesas e francesas do continente americano — incluindo pela própria instituição religiosa.
“De fato, houve a contradição entre os papas que condenaram a escravidão e muitas congregações na América que mantiveram pessoas escravizadas”, segundo Jesús Folgado.
“Mas a escravidão na América hispânica não podia ser comparada com a da América e do Caribe de fala inglesa”, afirma ele. Por quê?
“As congregações religiosas tiveram pessoas escravizadas”, prossegue o teólogo, “mas suas condições eram similares à dos trabalhadores de Castela [hoje, parte da Espanha] naquela época: eles tinham dias de folga e podiam sair e se casar, embora não fossem totalmente livres.”
Atualmente, temos poucas cópias desta controvertida versão do texto sagrado. Uma delas está na biblioteca da Universidade Fisk em Nashville, no Estado americano do Tennessee, e outras duas, nas Universidades de Oxford e Glasgow, no Reino Unido.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL


