Uma disputa de relevância ética e constitucional será definida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) após a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) pedir à Corte a suspensão da lei que dispõe sobre a pesquisa com seres humanos. De um lado, a SBB sustenta que a nova norma apresenta inconstitucionalidades que diminuem a proteção dos participantes de pesquisa.
Do outro, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal defendem a plena constitucionalidade do texto, argumentando que a lei foi fruto de um amplo debate democrático e visa preencher um vácuo regulatório no país. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 7.875), protocolada em setembro, é relatada pelo ministro Cristiano Zanin.
O julgamento da ação definirá os limites da regulamentação da pesquisa clínica no Brasil, ponderando o direito à saúde, a autonomia dos pacientes e a necessidade de segurança jurídica para o desenvolvimento científico. A SBB pede que o STF conceda uma medida cautelar para suspender imediatamente a eficácia dos artigos contestados, especialmente os relativos ao acesso de pacientes aos tratamentos pós-estudo.
O objetivo da entidade é restaurar o regime anterior previsto na Resolução 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), até o julgamento do mérito. Para a SBB, a liminar é necessária devido ao risco de dano irreversível à saúde, à autonomia dos pacientes e prejuízo financeiro ao SUS.
O Congresso, por sua vez, solicita que a cautelar seja negada, alegando que a suspensão imediata da lei criaria um risco de perigo inverso, gerando descontinuidade regulatória de difícil recomposição no ambiente de pesquisa do país.
O decreto presidencial que regulamenta a criação do Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos e estabelece a Instância Nacional de Ética em Pesquisa (Inaep), previstos na nova lei, foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) no início de outubro. As duas estruturas devem substituir a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), coordenada pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS).
No último dia 9, o CNS se reuniu para debater as mudanças e, com “amplo consenso”, considerou que a norma representa um “retrocesso e ameaça” ao sistema nacional de ética em pesquisa. Em nota divulgada após o encontro, a presidente do conselho, Fernanda Magano, apontou que a lei “reflete uma atitude conservadora do Congresso Nacional, pouco alinhada com os princípios da defesa das políticas públicas e da proteção social”.
Segundo o CNS, a Conep é responsável por coordenar e supervisionar a ética em todas as pesquisas clínicas realizadas no país, atuar no credenciamento e descredenciamento de Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs), na formação de seus membros e na análise de denúncias. O conselho deve decidir se entrará na ação como amicus curiae após uma nova reunião com o ministro da Saúde, Alexandre Padilha.
Na semana passada, a Câmara e o Senado enviaram a Zanin pareceres para contestar as acusações da SBB. O Legislativo defende a constitucionalidade plena da Lei 14.874/2024, ressaltando que o debate durou quase uma década. O texto aprovado em 2024 era um substitutivo da Câmara ao projeto apresentado em 2015 pelos ex-senadores Ana Amélia (na época, do PP de RS), Waldemir Moka (MDB-MS) e Walter Pinheiro (na época do PT da BA).
Antes de decidir sobre a liminar, Zanin também pediu, “em razão da natureza da controvérsia”, informações sobre o tema à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A FMUSP solicitou ao ministro um prazo de 30 dias para encaminhar o parecer. Veja abaixo os principais pontos questionados da lei.
Acesso do paciente ao tratamento após a pesquisa
O principal ponto do impasse trata da continuidade do tratamento depois do ensaio clínico. A SBB argumenta que a nova legislação impõe restrições significativas que configuram retrocesso em relação ao patamar protetivo anterior estabelecido pela Resolução CNS 466/2012, que garantia o acesso gratuito e por tempo indeterminado aos participantes.
A lei permite a interrupção do fornecimento gratuito pós-estudo após o transcurso do prazo de cinco anos, contado da disponibilidade comercial do medicamento no país; diante da ocorrência de reação adversa que, a critério do pesquisador, inviabilize a continuidade, mesmo diante de eventuais benefícios; e a partir da disponibilidade do medicamento experimental na rede pública de saúde (SUS).
A SBB sustenta que, ao prever a interrupção do fornecimento pelo patrocinador quando o medicamento estiver disponível no SUS, a lei transfere para o sistema público o ônus financeiro que antes era do patrocinador.
A Advocacia do Senado ressalta que “não há retrocesso” quando se estabelecem diretrizes “justas e proporcionais ao acesso pós-estudo para, em contrapartida, trazer segurança aos promotores de pesquisas e estímulos para que mais delas sejam realizadas em nosso país”.
Investimentos em pesquisas
Para o Congresso, a nova norma pode, inclusive, “captar maior número de investimentos, dado o interesse global e o aumento do investimento mundial em pesquisa e desenvolvimento (P&D) do setor biofarmacêutico”.
Durante a votação da proposta, o senador Dr. Hiran (PP-RR), relator do projeto, disse que a regulamentação pode trazer mais incentivos para o setor e acelerar a liberação de pesquisas clínicas no Brasil, principalmente para doenças graves, como câncer.
“Hoje nós estamos dando de presente a essas pessoas um marco legal pareado com o dos países que mais fazem pesquisa clínica no mundo. Com isso, vamos facilitar o acesso, trazer mais inovação, trazer mais recursos para o nosso país. O Congresso Nacional cumpriu mais uma vez sua função”, disse o relator após o Senado aprovar o texto.
Prerrogativa da União e do Congresso
A SBB aponta que o Congresso usurpou a prerrogativa do Poder Executivo ao criar a Instância Nacional de Ética em Pesquisa como um colegiado “integrante do Ministério da Saúde”. A entidade afirma que a criação de órgãos da administração pública federal e a organização administrativa são de iniciativa privativa do Presidente da República.
A Instância Nacional de Ética em Pesquisa é definida como um colegiado interdisciplinar e independente, de caráter normativo, consultivo, deliberativo e educativo, competente para proceder à regulação, fiscalização e controle ético da pesquisa.
O Legislativo nega ter invadido a prerrogativa do governo, pois a lei não estabelece regras para a administração pública federal, apenas trata de normas gerais sobre pesquisa clínica com seres humanos, matéria de “competência concorrente” com a União.
O Congresso destaca que a Instância Nacional de Ética em Pesquisa não constitui a criação de um novo órgão administrativo autônomo, pois trata-se um “colegiado técnico de caráter normativo, consultivo e deliberativo, inserido no contexto da política nacional de pesquisa”, e o Congresso “pode dispor sobre políticas públicas e criação de instâncias consultivas”.
Violação da autonomia do paciente
A lei permite a inclusão de participantes em situação de emergência nas pesquisas, mesmo sem consentimento prévio. Para a SBB, essa possibilidade é uma afronta à autonomia do paciente e ao regime de consentimento informado, contrariando a jurisprudência já fixada pelo STF (Tema 1.069 de Repercussão Geral).
A entidade também critica a insuficiência da previsão de “controle social” na governança da ética em pesquisa, alegando que ela não garante a participação efetiva e deliberativa da comunidade em todos os níveis.
O Legislativo argumenta que a inclusão em pesquisa sem consentimento prévio é uma medida excepcional justificada pela urgência e pela necessidade de salvar a vida ou a saúde do participante quando ele não tem condições de expressar sua vontade. A Advocacia do Senado aponta que a lei não exclui a autorização, apenas a difere para a “primeira oportunidade possível”, compatibilizando-se com o dever médico de salvar vidas.
Gastos para o SUS
A SBB argumenta que a norma cria despesa obrigatória sem a devida estimativa de impacto orçamentário ao tornar as instituições públicas corresponsáveis pela assistência integral e danos. A Câmara e o Senado rebatem a acusação de falta de previsão orçamentária, afirmando que os dispositivos questionados tratam de regras de responsabilidade e não criam “despesa obrigatória”.
De acordo com o Legislativo, “as obrigações de indenizar e assistir decorrem de eventos incertos e pontuais, sem automaticidade nem caráter continuado, distinguindo-se de ‘despesas obrigatórias’ no sentido do art. 113 do ADCT e da LRF”. Além disso, o Congresso aponta que é “plenamente razoável” permitir a interrupção do fornecimento quando o medicamento está disponível no SUS, pois o custo da medicação já está contemplado no orçamento da saúde pública.
Fonte. Gazeta do Povo




