5:34 AM
4 de novembro de 2025

Operação no Rio expõe o capital humano do crime – 03/11/2025 – Cecilia Machado

Operação no Rio expõe o capital humano do crime – 03/11/2025 – Cecilia Machado

PUBLICIDADE


O principal alvo da operação policial no Rio de Janeiro, Doca, fugiu amparado por uma barreira humana formada pelos “soldados” do tráfico. Doca escapou; eles, não. Entre os mortos estava Hércules Célio Lima, de 23 anos, que, segundo o pai, entrou para o tráfico aos 18. Por mais que as atenções se concentrem nos chefes das quadrilhas, os mercados ilegais operam por uma ampla rede de indivíduos, muitos recrutados ainda jovens, como Hércules.

Uma análise com 230 moradores de favelas do Rio que trabalhavam para o tráfico mostra que a “firma” do crime opera com impressionante racionalidade econômica. Há funções de entrada —olheiros e vapores—, intermediárias —soldados e vendedores— e de gestão, ocupadas pelos gerentes.

O ingresso é precoce: mais da metade começa entre 13 e 15 anos. O salário médio é 23% maior que o recebido por demais jovens das favelas, mas baixo para os riscos envolvidos. Em dois anos, 20% dos entrevistados haviam morrido. Há progressão: o salário no topo é cerca de 90% maior que o de entrada, com mortalidade 10 pontos percentuais superior.

Mas, afinal, por que tantos jovens decidem ingressar na carreira criminal? Os ganhos do trabalho ilegal seriam tão substanciais assim para justificar uma escolha de elevado risco? Ou existem fatores específicos que levam pessoas a ingressar cedo no crime e permanecer nele ao longo da vida?

Um estudo recente para o Peru mostra que a exposição infantil a mercados ilegais pode moldar uma trajetória inteira. Quando os preços da coca aumentaram, famílias pobres passaram a empregar os filhos nas plantações. Entre crianças de 11 a 14 anos, a evasão escolar cresceu 26%, e, na vida adulta, esses jovens apresentaram probabilidade 30% maior de serem presos por crimes de drogas ou violência.

O efeito não decorre da pobreza, mas do aprendizado e das redes formadas no setor ilegal —uma espécie de “capital humano criminoso” que qualifica o indivíduo apenas para atuar nesse tipo de atividade.

Assim como a escola desenvolve habilidades formais, o trabalho precoce em economias ilícitas ensina ofícios, rotinas e códigos que perpetuam o crime. É um processo de “especialização precoce”: quanto mais tempo a criança permanece exposta ao ambiente ilegal, mais difícil se torna retornar ao mercado formal. A criminalidade, nesse sentido, é resultado de uma trajetória educacional substituta, não apenas de falta de oportunidades.

Como as carreiras criminosas são moldadas pela exposição precoce a economias ilegais, é essencial que as políticas públicas de combate ao crime organizado considerem as idades em que essa vulnerabilidade é maior. Medidas que elevem o valor presente da educação e reduzam o trabalho infantil e juvenil podem alterar esses incentivos. No Peru, o programa Juntos, transferência de renda condicionada à frequência escolar, conseguiu reduzir tanto o envolvimento infantil no cultivo de coca quanto a criminalidade futura —evidência de que o Estado pode disputar com o crime a formação e o futuro de seus jovens.

A morte de Hércules não é apenas uma tragédia individual. É o retrato do desequilíbrio estrutural entre dois mercados —o legal e o ilegal— que competem pelo mesmo contingente de jovens. Enquanto o primeiro falha em oferecer oportunidades concretas, o segundo se impõe com resultados imediatos que fecha qualquer porta de saída. O pai de Hércules tentou por cinco anos fazê-lo trabalhar com ele no sacolão de onde tira o sustento. “Sou feirante, o que eu tinha pra oferecer era isso. Ele não quis”.


LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.



Fonte.:Folha de S.Paulo

Leia mais

Rolar para cima