Os 252 venezuelanos enviados pelos Estados Unidos a uma prisão de El Salvador em março e abril deste ano foram submetidos a tortura sistemática por autoridades carcerárias, incluindo sessões de espancamento, abuso sexual e nudez forçada, afirmou a Human Rights Watch (HRW) nesta quarta-feira (12).
As conclusões são fruto de uma investigação de oito meses que reuniu cerca de 200 depoimentos, incluindo de 40 dos detidos, além de pessoas com conhecimento do assunto. O relatório, feito em parceria com a ONG centro-americana Cristosal, fala ainda em desaparecimento forçado e mostra que quase metade dos deportados não tinha antecedentes criminais nos EUA.
As violações, segundo o documento, começaram no momento da deportação. A maioria dos migrantes foi expulsa dos EUA em 15 de março, quando o governo de Donald Trump enviou de uma só vez 224 venezuelanos ao Cecot (Centro de Confinamento do Terrorismo), presídio vitrine do governo linha dura de Nayib Bukele em El Salvador, sob a justificativa de que eles pertenciam à gangue Tren de Aragua.
Destes, 137 foram deportados sob a Lei de Inimigos Estrangeiros dos EUA, um regulamento criado em 1798 que, até este ano, havia sido acionado em somente três ocasiões na história americana —todas situações de guerra aberta. Para justificar a aplicação da lei, o governo Trump afirmou um dia antes da deportação que a gangue venezuelana fazia parte de um “Estado criminoso híbrido que perpetra uma invasão e uma incursão predatória” contra os EUA.
De acordo com a HRW, o documento com os critérios para determinar quem se qualificava como um “inimigo estrangeiro” era falho. “O guia instruía os agentes do ICE [Serviço de Imigração e Alfândega dos EUA] a atribuir pontos com base em supostos indicadores de associação ao Tren de Aragua, incluindo tatuagens, gestos com as mãos ou estilos de roupas que supostamente refletiam lealdade ao grupo”, diz o relatório.
Dados do próprio governo analisados pela ONG mostram que apenas 3,2% dos venezuelanos enviados para o país centro-americano haviam sido condenados nos EUA por delitos violentos e 48,8% não tinham antecedentes criminais —variável que diminui para 43,2% entre venezuelanos que também foram deportados, mas para outros lugares que não a prisão salvadorenha.
Segundo o diretor adjunto para as Américas da HRW, Juan Pappier, o caso vincula os EUA à tortura sistemática pela primeira vez desde a Guerra ao Terror e revela práticas que, se não foram inauguradas por Trump, cresceram em seu governo.
Um exemplo é a deportação ao que se chama de um “terceiro país” —ou seja, uma nação diferente da de origem do migrante. “Com Biden, isso ocorria excepcionalmente; agora, aumentou muito”, afirma Pappier à Folha.
De acordo com o relatório, ao menos três dos 252 venezuelanos foram submetidos a violência sexual. Um deles, identificado como Mario J., disse que seu caso ocorreu em uma cela de isolamento após um exame médico. “Eles brincaram com seus cassetetes no meu corpo [e] enfiaram os cassetetes entre as minhas pernas e os esfregaram nas minhas partes íntimas”, afirma. Em seguida, teriam o forçado a fazer sexo oral em um dos guardas.
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A newsletter da Folha sobre América Latina, editada pela historiadora e jornalista Sylvia Colombo
Dos 40 detidos com os quais a HRW falou, 32 relataram sessões de espancamento —uma delas após uma visita do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). De acordo com o detento Daniel B., os golpes, que o deixaram com o nariz sangrando, ocorreram por supostamente “terem reclamado à Cruz Vermelha” das condições da prisão.
“Eles continuavam me batendo no estômago e, quando eu tentava recuperar o fôlego, começava a me engasgar com o sangue. Meus companheiros de cela gritavam por socorro, dizendo que estavam nos matando, mas os guardas diziam que só queriam nos fazer sofrer. Graças aos meus companheiros de cela, eles me ajudaram e eu sobrevivi. Meu nariz ficou torto por causa dos golpes”, afirma.
Os relatos não deveriam ser surpresa ao governo americano. Desde março de 2022, El Salvador vive sob um estado de exceção que prendeu mais de 2% da população adulta do país e tornou praticamente inexistente o direito de defesa. O país centro-americano está repleto de casos de desaparição e tortura —em especial no Cecot, prisão de segurança máxima inaugurada com pompa em 2023 por Bukele.
De acordo com Pappier, os venezuelanos não foram apresentados a nenhum juiz durante os meses em que permaneceram em El Salvador e as solicitações de habeas corpus foram ignoradas pela justiça do país.
“O habeas corpus é um recurso básico utilizado para garantir a vida e a integridade física de uma pessoa presa. É o instrumento que se apresentava nas ditaduras do Cone Sul quando as pessoas estavam desaparecidas. E a justiça de El Salvador não responde sequer a esse recurso tão básico, o que demonstra que é um país sem Estado de Direito”, afirma o diretor adjunto da ONG.
Até agora, os inúmeros registros de violações não abalaram a popularidade de Bukele —especialmente fora do país, onde o presidente salvadorenho se tornou uma espécie de estrela da ultradireita. Para Pappier, Trump usou a máquina publicitária de Bukele para assustar migrantes ou aqueles que pensem em ir para os EUA.
Todos os 252 migrantes que estavam no Cecot foram enviados à Venezuela em julho após um acordo de Bukele com o ditador Nicolás Maduro. Em troca, Caracas libertou dez cidadãos dos EUA detidos no país sul-americano. A saída, no entanto, preocupa Pappier.
“Alguns deles fugiam da perseguição do regime de Maduro. Soubemos que estão sofrendo assédio por parte dos serviços secretos bolivarianos e acreditamos que algumas dessas pessoas podem estar em risco de perseguição por parte do regime”, afirma.
Fonte.:Folha de S.Paulo


