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- Author, Katarina Zimmer
- Role, Revista Knowable*
As dez cobras enfrentavam uma situação difícil.
Recolhidas na Amazônia colombiana, as jabutiboias (Erythrolamprus reginae) permaneceram em cativeiro sem comida por vários dias, até ganharem de presente uma presa nada apetitosa: sapos-flecha (Ameerega trivittata).
A pele dessa espécie de sapo contém toxinas mortais, como histrionicotoxinas, pumiliotoxinas e decaidroquinolinas, que interferem nas proteínas celulares essenciais.
Seis das jabutiboias preferiram passar fome. As outras quatro deslizaram intrepidamente para caçar.
Mas, antes de engolir a refeição, elas arrastaram os sapos no chão, como fazem algumas aves para retirar as toxinas das suas presas, segundo a bióloga Valeria Ramírez Castañeda, da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, que conduziu o experimento com seus colegas.
Os seres vivos produzem moléculas mortais destinadas a matar seus inimigos há centenas de milhões de anos.
Primeiro, vieram os micróbios, que usavam substâncias para eliminar concorrentes ou atacar células hospedeiras sendo invadidas. Depois, os animais, para matar presas ou afastar predadores, e as plantas, para se defender dos herbívoros.
Em resposta, muitos animais evoluíram criando formas de sobreviver a essas toxinas. Às vezes, eles chegam a armazená-las para usar contra seus próprios oponentes.
Os cientistas estão começando a descobrir essas criativas defesas antitoxinas. Eles esperam identificar melhores tratamentos para o envenenamento das pessoas.
Basicamente, eles estão aprendendo sobre uma força que vem ajudando silenciosamente a modelar as comunidades biológicas, segundo a bióloga evolutiva Rebecca Tarvin, também da Universidade da Califórnia em Berkeley. Ela ajudou a supervisionar o experimento com as cobras e descreveu essas estratégias na edição de 2023 da Revista Anual de Ecologia, Evolução e Sistemática (em inglês).
“Apenas alguns miligramas de um único composto e aquilo pode mudar todas as interações em um ecossistema”, afirma Tarvin.
Guerra biológica
As espécies se tornam tóxicas em uma série de formas. Algumas delas produzem as próprias toxinas.
Os sapos da família Bufonidae, por exemplo, produzem moléculas chamadas glicosídeos cardíacos. Eles impedem uma proteína denominada bomba de sódio e potássio de desviar os íons para dentro e para fora das células.
Este desvio é fundamental para manter o volume celular, contrair os músculos e transmitir impulsos nervosos.
Outros animais abrigam bactérias produtoras de toxinas nos seus corpos. É o caso do baiacu; sua carne contém tetrodotoxina e seu consumo pode ser fatal.
E muitos outros conseguem suas toxinas na alimentação. Exemplos são os sapos venenosos, que devoram ácaros e insetos que contêm toxinas. Estes sapos incluem a espécie que foi oferecida como alimento para as jabutiboias.
À medida que muitos animais evoluíam para se tornarem tóxicos, eles também reprogramavam seus corpos para evitar que se envenenassem a si próprios. E o mesmo aconteceu com as criaturas que eles comem, ou com as que se alimentam deles.
Insetos que crescem e se alimentam de asclépias, por exemplo, que são plantas ricas em glicosídeos, possuem bombas de sódio e potássio evoluídas, às quais o glicosídeo não consegue se ligar.

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Mas alterar uma molécula vital pode criar complicações para uma criatura, segundo a bióloga molecular Susanne Dobler, da Universidade de Hamburgo, na Alemanha.
Nos seus estudos com o percevejo Oncopeltus fasciatus, que se alimenta de sementes de asclépias, ela descobriu que, quanto mais resistente a glicosídeos a bomba se torna, menos eficiente ela fica.
Este é um problema nas células nervosas, onde a bomba é especialmente importante. Mas o inseto parece ter evoluído de forma de solucionar esta questão.
Em um estudo de 2023, Dobler e seus colegas estudaram a resistência a toxinas em três versões da bomba produzidas pela criatura. Eles descobriram que a mais funcional, no cérebro, também é a mais sensível à toxina.
O percevejo deve ter evoluído outras formas de proteger o cérebro contra os glicosídeos, segundo Dobler.
A bióloga suspeita que proteínas chamadas transportadores ABCB estejam envolvidas. Elas ficam nas membranas celulares e desviam resíduos e outros produtos indesejados para fora das células.
Ela descobriu que certas mariposas-esfinge usam proteínas transportadoras ABCB situadas em torno dos seus tecidos nervosos para eliminar glicosídeos cardíacos das células. E talvez o Oncopeltus fasciatus faça algo parecido.
Dobler também está testando a hipótese de que muitos insetos possuem transportadores ABCB nas suas membranas intestinais, que impedem as substâncias tóxicas de entrar no corpo.
Isso poderia explicar por que o besouro-pimenta, que se alimenta de lírios-do-vale ricos em glicosídeos, parece não se abalar com as toxinas e simplesmente as excreta. E as fezes resultantes ainda repelem formigas predadoras, segundo relatou Susanne Dobler em 2023.
‘Esponjas de toxinas’
Para as jabutiboias, o fígado parece ser fundamental. Nos experimentos com cultivos celulares, a equipe de Rebecca Tarvin descobriu evidências de que algo no extrato de fígado da cobra protege o animal contra as toxinas dos sapos-flecha.
A hipótese formulada pela equipe é que as cobras possuem enzimas que transformam as substâncias mortais em formas atóxicas, mais ou menos como o corpo humano faz com o álcool e a nicotina.
O fígado da cobra também pode conter proteínas que se ligam às toxinas e as impedem de se unir aos seus alvos, absorvendo-as como se fossem esponjas.

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O esquilo-terrestre-da-califórnia parece empregar um truque parecido para se defender do veneno da cascavel, um coquetel de dezenas de toxinas que destroem as paredes dos vasos sanguíneos, evitam a coagulação do sangue e muito mais.
O sangue desta espécie de esquilo contém proteínas que bloqueiam algumas dessas toxinas, como as utilizadas pelas próprias cascavéis para sua proteção, caso o veneno escape das suas glândulas venenosas especializadas.
Essas defesas não são infalíveis. As cascavéis evoluem constantemente para produzir novos venenos e superar as adaptações dos esquilos, segundo Holding, e mesmo a cascavel irá morrer se for injetada com quantidade suficiente do seu próprio veneno.
É por isso que os animais, mesmo os resistentes, tentam evitar as toxinas como primeira medida defensiva. Daí vem o costume das cobras terrestres de arrastar a presa e a prática de algumas tartarugas de consumir apenas a pele da barriga e as vísceras de salamandras tóxicas, não a sua pele traseira mortal.
Mesmo os insetos que são resistentes a glicosídeos cardíacos, como as larvas da borboleta-monarca, cortam as veias da asclépia para permitir a saída do fluido tóxico, antes de adentrar na planta.
Cooptando toxinas
Muitos animais também encontram formas de armazenar com segurança as substâncias tóxicas que consomem e utilizá-las com seus próprios objetivos.
“Quando você faz algo para perturbar esses besouros, pode ver pequenas gotículas aparecerem sobre o seu élitro, a superfície dorsal dos insetos”, explica Dobler.
Com este tipo de cooptação de venenos, alguns insetos ficam dependentes das suas plantas hospedeiras para sobreviver.
A relação entre a borboleta-monarca e a asclépia é um exemplo típico dessa dependência e do longo alcance que essas conexões interligadas podem atingir.
Em um estudo de 2021, o biólogo evolutivo e geneticista Noah Whiteman, da Universidade da Califórnia em Berkeley, e um de seus colegas identificaram quatro animais que evoluíram para tolerar glicosídeos cardíacos, o que permitiu a eles se alimentar da borboleta-monarca.
Um deles é o bicudo-de-cabeça-preta, um pássaro que se banqueteia com as monarcas nas florestas de pinheiros no alto das montanhas do México, quando as borboletas voam para o sul no inverno.
Whiteman nos recomenda pensar nesta ideia: uma toxina que foi produzida por uma planta de asclépia em uma pradaria de Ontário, no Canadá, ajudou a formar a biologia de uma ave que, agora, pode jantar com segurança em uma floresta localizada a quilômetros de distância.
“É simplesmente incrível a jornada dessa pequena molécula e a influência que ela teve na evolução”, exclama ele.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL


