
Crédito, Base Bahay Foundation
O vibrante distrito comercial de Tarqui, no centro da cidade, foi completamente destruído. As ruas foram marcadas por profundas fissuras que engoliram os escombros das construções de concreto.
Manta, em grande parte, foi reconstruída. Mas uma parte inesperada do legado do terremoto permanece visível até hoje.
Na região da cidade mais afetada durante o terremoto, um mercado de peixe se destaca sob um pavilhão de bambu na orla. Ali ficam também o centro de informações turísticas, um restaurante e um posto dos bombeiros, todos construídos com bambu.
Na verdade, centenas de casas tradicionais de bambu permanecem de pé por toda a cidade e na província de Manabí.
“Todas elas foram construídas antes do terremoto”, conta Pablo Jácome Estrella, diretor regional para a América Latina e o Caribe da Organização Internacional de Bambu e Rattan (Inbar, na sigla em inglês). “Elas permaneceram de pé.”
O bambu é utilizado como material de construção na América do Sul, África e Ásia há milênios. Ele é encontrado em grande quantidade em muitos países desses continentes.
Mas, apenas recentemente, sua resiliência sísmica começou a ser mais reconhecida.
Cada vez mais pesquisas e testes de impacto em laboratório indicam que suas notáveis propriedades naturais podem fazer do bambu um material ideal para suportar terremotos.
Em todo o mundo, das Filipinas ao Equador, passando pelo Paquistão, existem atualmente projetos de construção que buscam usar esse material natural que engenheiros e arquitetos consideram melhor que o aço.
Construções que vergam
No litoral do Equador, as pessoas costumavam esperar o quarto-crescente, ou o quarto-minguante, para colher bambu. Depois, elas o levavam para o mar, para limpeza e preservação, explica Jácome Estrella.
Mesmo com este histórico, o potencial do bambu nem sempre foi tão conhecido em Manabí.
Jácome Estrella conta que, nos anos 2000, um professor de arquitetura de Manta percebeu que o corpo de bombeiros da cidade evitava a construção com bambu, acreditando que o material é inflamável.
O bambu, de fato, é naturalmente inflamável, mas existem tratamentos retardantes de chamas que controlam essa propriedade. Por isso, ele começou a trabalhar como bombeiro voluntário.
“Ele os convenceu a construir um posto de bombeiros de bambu”, segundo Jácome Estrella.
Este primeiro posto tinha um teto enorme em abóbada, capaz de acomodar diversos carros de bombeiros e caminhões-pipa. E ele resistiu ao terremoto de 2016.
“Natureza projetada para vergar”, afirma o professor Bhavna Sharma, da Universidade do Sul da Califórnia, nos Estados Unidos. Suas pesquisas se concentram no uso do bambu nas construções.

Crédito, Nick Aspinwall
Os caules de bambu, ocos e verticais, são leves, o que reduz a massa da estrutura.
“As construções precisam se mover em um terremoto”, explica Sharma. “Nós queremos apenas controlar o quanto elas se movem.”
Uma pesquisa realizada após o terremoto, com mais de 1,2 mil construções em Manabí, concluiu que, de forma geral, os edifícios de concreto reforçado sofreram danos maiores que as construções de bambu e madeira, segundo o engenheiro estrutural Sebastian Kaminski, da consultoria britânica especializada em engenharia Arup, que fez parte da missão.
Mas esta tendência foi revertida em algumas cidades. Segundo ele, os dados pós-terremoto também precisam ser considerados com certa cautela.
Neste caso, por exemplo, eles foram coletados várias semanas após o evento, quando muitas construções já haviam sido demolidas.
Atualmente, um projeto lançado em 2021 pela Inbar e pela Agência Espanhola de Cooperação para o Desenvolvimento Internacional construiu centenas de novas casas de bambu na província de Manabí, onde fica a cidade de Manta.
O projeto também ensinou técnicas de construção com bambu a cerca de 200 alunos da Universidade de Manabí, como o tratamento dos caules de bambu e a montagem de painéis.
O custo de construção de uma casa de dois quartos é de menos de US$ 20 mil (cerca de R$ 107 mil), segundo Jácome Estrella, o que é praticamente o mesmo custo de uma casa construída com materiais convencionais.
“Temos uma expressão que diz: é a madeira dos inteligentes”, afirma ele, sobre o bambu. “É renovável, sustentável e causa baixo impacto ao mercado.”
Essas casas novas são inspiradas em um método de construção tradicional chamado bahareque, ou pau a pique, em português. Nele, uma rede de bambu é coberta por uma camada de argila úmida.
Revolucionário
Naquela ocasião, observadores notaram que as estruturas de pau a pique aparentemente resistiram em percentual maior do que as de material de alvenaria, como tijolos e blocos de cimento.
“Aquele terremoto revolucionou o sistema”, segundo Luis Felipe López, gerente-geral da Fundação Base Bahay. Com sede em Manila, nas Filipinas, a organização desenvolve e constrói casas de bambu no país asiático.
López nasceu na região colombiana atingida pelo terremoto. Naquela época, ele trabalhava na sua tese sobre engenharia estrutural e observou que havia escassez de pesquisas sobre as propriedades estruturais do bambu.
Os códigos de construção globais foram desenvolvidos utilizando séculos de pesquisas realizadas por engenheiros dos Estados Unidos e da Europa, que “nunca viram bambu na vida”, segundo ele. E o Sul Global “copiou e colou do norte os seus códigos de construção”.

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López acabou levando seu trabalho para a Fundação Base Bahay, fundada em 2014 para criar um laboratório de estudo do desempenho do bambu.
“As universidades do norte global disseram: ‘Espere aí, este material parece super interessante'”, destaca López. “Porque foi o momento em que as mudanças climáticas começaram a ganhar importância.”
“Tudo isso faz parte das vantagens do bambu, seus benefícios em termos de florestamento regenerativo”, explica Sharma, “mas há também as ideias de sustentabilidade em relação à igualdade socioeconômica.”
‘Dádiva de Deus’
Desde 2014, a Fundação Base Bahay construiu mais de 800 casas em 10 comunidades espalhadas pelas Filipinas. A entidade começou na região de Bicol, que sofre com tufões anualmente.
“É suficientemente leve para um terremoto e pesado o suficiente para um ciclone”, explica a engenheira da Inbar Liu Kewei, que trabalhou no desenvolvimento da técnica.
“Os arquitetos sempre dizem que o bambu natural é uma dádiva de Deus”, segundo ela, “porque a natureza criou este tipo de planta com caule oco.”
Impulso global
Em fevereiro de 2025, visitei o laboratório da Fundação Base Bahay no centro da capital filipina, Manila. López e eu caminhamos sem pressa pelo local.
Encontramos pesquisadores de universidades filipinas e britânicas. Eles realizavam testes com plantas de bambu colhidas e com bambu industrializado — produtos elaborados em formatos e tamanhos padronizados para uso como madeira de construção.

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López e seus colegas publicaram muitos estudos sobre o desempenho sísmico do bambu ao longo dos anos.
Além do seu trabalho na Colômbia e nas Filipinas, ele passou a colaborar com os esforços em andamento para padronizar os códigos de construção globais com bambu.
Mas a inclusão do bambu em códigos de construção padronizados ainda é difícil.
Ao contrário dos produtos de madeira industrializados, é difícil padronizar os caules de bambu naturais, com seus tamanhos e formatos diferentes, apesar das características estruturais similares.
“Você simplesmente o trata e usa”, explica López. “Você usa o que a natureza der a você.”
Ainda assim, desde o terremoto de 1999 na Colômbia, a Organização Internacional para a Padronização (ISO, na sigla em inglês) adotou códigos de construção com bambu. O último deles, publicado em 2021, “ainda é a última geração” sobre o tema, segundo Kaminski. Ele atuou como colaborador para o seu desenvolvimento.
Os governos do Peru, Equador, Bangladesh, Índia e México também desenvolveram códigos de bambu nacionais. Já as Filipinas e o Nepal estão atualmente elaborando esses códigos, destaca ele.
Como qualquer material, o comportamento das construções de bambu em um terremoto depende da qualidade do seu projeto, construção e manutenção, segundo Kaminski.
“Se qualquer um desses pontos não for bem feito, as construções de bambu podem ser tão vulneráveis aos terremotos quanto outros materiais”, explica ele.
Para Kaminski, o maior benefício das construções com bambu tradicionais é que elas tendem a ser leves. Por isso, elas atraem menos forças sísmicas, podem absorver parte dessa energia e existe uma certa amarração dos postes.
“Basicamente, como elas costumam ser leves, seu colapso representa menos riscos à segurança e à vida dos seus ocupantes”, destaca o engenheiro.
Kaminski relembra que, na sua experiência, as comunidades costumam acreditar que o bambu pode resistir aos terremotos, mas não que o material seja durável. Isso ocorre porque as pessoas conhecem estruturas tradicionais que não são tratadas para proteção completa contra insetos e infiltração de água.
“É sempre essencial tratá-lo e mantê-lo seco”, orienta ele. “A analogia frequente, aqui, é que a construção precisa de um bom chapéu e botas.”
É possível tratar o bambu com o inseticida boro e, da mesma forma que as casas de madeira, estruturas com bom desempenho incluem telhados na parte superior e paredes à prova d’água para garantir que o bambu fique seco.

Crédito, Base Bahay Foundation
É claro que a resiliência aos terremotos não é a única característica que atrai as pessoas ao bambu.
Arquitetos de todo o mundo começaram a construir estruturas grandiosas e sustentáveis com bambu. Elas variam desde desajeitados pavilhões no Vietnã até os jardins de bambu do Aeroporto Internacional Kempegowda, em Bengaluru (antiga Bangalore), na Índia.
Na Europa e nos Estados Unidos, a única espécie nativa de bambu é uma gramínea lenhosa encontrada no sul dos Estados Unidos. Lá, seu uso é incomum.
Bambu para uso em emergências
O bambu também pode ser um material extremamente útil para a recuperação após a ocorrência de desastres, segundo Kaminski.
“O que fizemos foi fortalecê-las, inserindo barras de aço nas fundações”, ela conta. “Tudo realmente foi unido muito bem, para que pudesse balançar.”
Lari começou, então, a projetar casas de bambu de ultrabaixo custo no Paquistão: estruturas de tijolos de barro com telhados de bambu e o interior das paredes com bambu inserido. Elas utilizavam apenas materiais disponíveis localmente, eliminando a necessidade de aço.
As estruturas foram usadas como abrigos para desastres resistentes a enchentes, após as cheias de 2022, que deixaram um terço do Paquistão debaixo d’água.
Em 2023, Lari ganhou uma medalha de ouro real do Instituto Real de Arquitetos Britânicos, em reconhecimento ao seu trabalho humanitário no setor da arquitetura.
Lari conta que, em 2021, ela e os pesquisadores da Universidade NED de Engenharia e Tecnologia, no Paquistão, submeteram um modelo em meia escala dessas estruturas a um teste em uma mesa vibratória, simulando a força do terremoto de 7,2 graus de magnitude ocorrido em Kobe, no Japão, em 1995.
O modelo resistiu a 100% da força daquele terremoto, depois a 200% e chegou a 250%. “Nada aconteceu”, relembra Lari.
Ela conta que a estrutura só começou a ceder com 670% da potência do terremoto de Kobe.
Inspiradas pelo método tradicional Dhajji de construção com pedaços de madeira, as casas de Lari podem ser construídas por até US$ 88 (cerca de R$ 472). Este valor, segundo ela, representa menos de 10% do necessário para cada casa de assistência construída pelo Banco Mundial.

Crédito, Base Bahay Foundation
Depois das cheias do Paquistão, em 2022, Lari conta que o Banco Mundial insistiu na reconstrução com tijolos e concreto.
“As tradições locais nunca tiveram a chance de sobreviver ou ser perpetuadas”, lamenta ela.
Um porta-voz do Banco Mundial declarou à BBC que a capacidade de uso mais amplo de tecnologias como o bambu em esforços de reconstrução, muitas vezes, é limitada pela falta de testes de laboratório e pelos códigos de construção locais.
“Muitos códigos locais não incluem normas de resiliência para práticas de construção tradicionais, o que restringe a adoção de materiais como o bambu”, segundo o organismo.
O Banco Mundial destaca que, no Paquistão, o uso do bambu foi limitado por muitos fatores, como o nível de aceitação pela comunidade, a falta de conhecimento local e de treinamento dos trabalhadores locais para a construção baseada no bambu e a falta de instalações de testes ou tratamento estabelecidas naquela província.
Mas a instituição afirma que “reconhece o valor das tecnologias de construção adaptadas localmente, como o bambu, que podem oferecer soluções de baixo custo, sustentáveis e resistentes em muitos contextos”.
Um exemplo, segundo o Banco Mundial, foi a reconstrução da região produtora de café da Colômbia, após o terremoto de 1999. Uma nota de orientação oficial adotada por uma associação de engenharia do país determinou como o bambu poderia ser usado nas construções com segurança e eficiência.
Mas, no Paquistão, como nas Filipinas e no Equador, existe uma noção que é prejudicial: de que o bambu é “o material dos pobres”, segundo Lari.
Mas, hoje, esta percepção é mais questionada do que nunca.
Embora as estruturas de bambu sejam limitadas a um ou dois pisos, os arquitetos, agora, estão testando construções de bambu mais altas, com múltiplos andares — uma possível comprovação da viabilidade do bambu em estruturas de alta densidade em larga escala.
Para Liu, as pessoas que experimentam o bambu pela primeira vez, muitas vezes, são tomadas pela sensação de que uma estrutura estável e resistente a desastres também pode trazer maior conexão com a natureza.
“Quando você está em uma casa de bambu, acho que poderá se comover com a atmosfera. Ao entrar em um ambiente natural, você se sentirá mais confortável.”
Fonte.:BBC NEWS BRASIL


