É comum associar estrelas de rankings internacionais como Guia Michelin ou 50 Best a hotéis e restaurantes que são símbolos de prestígio e excelência. Através da metodologia do cliente anônimo, essas organizações construíram uma aura de oráculo moderno, sendo referência global na avaliação de estabelecimentos.
Nos últimos meses, contudoi, a credibilidade dos rankings passou a ser alvo de críticas.
O debate começou após o Guia Michelin, referência na avaliação de restaurantes há mais de um século, lançar em outubro deste ano, a primeira edição de sua nova categoria dedicada a hotéis: as chaves Michelin. No total, 2.457 estabelecimentos ao redor do mundo foram reconhecidos pela nova classificação, voltada a atrair viajantes exigentes.
O que despertou críticas foi que a organização do guia confirmou que organizações governamentais pagam para que seus avaliadores visitem determinadas cidades onde estão hotéis e restaurantes, o que significaria, segundo críticos, que certos lugares poderiam estar sendo beneficiados em detrimento de outros.
Interlocutores do setor de hotelaria ouvidos pela Folha criticam a forma como países fora do continente europeu são avaliados. “O Brasil brilha, mas ainda fica aquém do que merece: são apenas 20 hotéis reconhecidos pelas chaves Michelin em um país de proporções continentais que respira hospitalidade”, diz Charles Piriou, consultor e especialista em hotéis.
Piriou afirma que as últimas edições dos rankings internacionais revelaram talentos, mas afirma que o Brasil ainda é visto por lentes “estreitas demais”. Para ele, falta transparência sobre o que torna esses avaliadores autoridades na hospitalidade de cada região, um fator que compromete, em sua visão, a compreensão real do cenário brasileiro.
Em nota, a organização do Michelin diz que não há “busca por uma cota regional” e que “o Guia distingue os melhores hotéis onde quer que estejam, com base em embaixadores culturais de suas regiões, destacando lugares autênticos voltados para atender às altas expectativas de viajantes experientes.”
No Brasil, apenas o Rosewood São Paulo e o Hotel das Cataratas, em Foz do Iguaçu (PR), foram contemplados com três chaves —a pontuação máxima, atribuída a estadias consideradas extraordinárias, capazes de justificar uma viagem por si só. Outros dois receberam duas estrelas e os demais receberam apenas uma.
Para Camilla Barreto, porta-voz da BLTA, associação brasileira que reúne operadores de viagens de luxo, os incentivos financeiros e parcerias que viabilizam essas visitas podem distorcer a percepção do cenário global da hotelaria. Ela estima que ao menos 40 hotéis brasileiros têm padrão para figurar em seleções internacionais, mas acabam fora do radar por falta de visibilidade.
O Guia Michelin se mantém por meio de parcerias com empresas e órgãos públicos, que bancam cerimônias e campanhas de promoção de destinos. Além disso, ele tem como fonte de receita comissões sobre reservas feitas em seu aplicativo, o Tablet Hotels, que foi comprado em 2018.
William Drew, diretor da 50 Best na América Latina, afirma que a organização é financiada principalmente por patrocinadores, que não têm acesso prévio ao ranking. “Parceiros de destinos anfitriões também contribuem para a realização dos programas de eventos em sua cidade, região ou país, mas isso não determina a estrutura dos rankings”, afirma.
O diretor da organização afirma que os jurados são selecionados por serem “viajantes internacionais frequentes e especialistas em suas áreas”. Segundo ele, há diversos votantes situados no Brasil, e as academias buscam manter equilíbrio de gênero e diversidade geográfica, étnica e profissional. Além disso, ao menos 25% dos integrantes são renovados anualmente.
No setor critica-se a pouca transparência sobre um eventual conflito de interesses entre os rankings e a receita obtida por meio de comissões. Tanto o Guia Michelin quanto o 50 Best não divulgam o número exato de avaliadores por localização ou especialidades técnicas. A justificativa, segundo eles, é a de preservar o anonimato e a independência.
Especialistas ouvidos pela reportagem concordam que a metodologia do cliente oculto é a forma mais eficaz de avaliar a consistência de um hotel. Nela, um inspetor vai ao estabelecimento de forma anônima, a fim de reproduzir a experiência real do hóspede. Entretanto, apontam que seria necessário ampliar o número de avaliações especializadas para refletir com mais precisão a realidade da hospitalidade no Brasil.
50 Best Hotels e Chaves Michelin: entenda a diferença
1. Organizador
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50 Best Hotels: Foi criado em 2002 pela revista britânica Restaurant, ligada à William Reed, empresa de dados e eventos de alto padrão
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Chaves Michelin: foi criada pelo fabricante francês de pneus Michelin. O guia de nome homônimo introduziu as estrelas para restaurantes em 1900, e sua versão voltada para hotéis surgiu em 2025
2. Metodologia de avaliação
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50 Best Hotels: Avaliação feita por meio de 800 especialistas internacionais anônimos: Os votantes variam de hoteleiros a jornalistas de viagens, viajantes de luxo experientes, profissionais da área da hotelaria e outros viajantes experientes
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Chaves Michelin: Inspetores anônimos visitam os hotéis e custeiam suas próprias estadias para assegurar imparcialidade. Ao final, cada um atribui uma nota à experiência
3. Nota
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50 Best Hotels: Cada membro da Academia tem sete votos e deve listar, em ordem de preferência, os melhores hotéis em que se hospedou nos últimos 24 meses. A soma desses votos gera o ranking final dos 50 melhores
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Chaves Michelin: Um hotel pode receber de uma a três chaves Michelin. Uma chave indica uma estadia muito especial, com personalidade e serviço acima da média. Duas chaves representam uma estadia excepcional, marcada por experiências memoráveis e gestão cuidadosa. Três chaves correspondem ao nível máximo: uma estadia extraordinária, com excelência e singularidade em todos os aspectos.
4. Critérios de avaliação
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50 Best Hotels: A avaliação é feita com base exclusivamente na experiência pessoal dos votantes. Os especialistas podem indicar qualquer hotel que considerem excepcional.
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Chaves Michelin: Utiliza cinco critérios universais para selecionar hotéis: excelência em arquitetura e design de interiores, qualidade e consistência do serviço, personalidade e caráter, custo-benefício e contribuição significativa para a vizinhança ou região.
5. Financiamento
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50 Best Hotels: Os patrocinadores não têm acesso prévio ao ranking, segundo a organização. O 50 Best é controlado pela empresa independente William Reed e se financia principalmente por patrocínios. Destinos que sediam eventos também contribuem, mas essas parcerias não influenciam a composição das listas.
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Chaves Michelin: Firma parcerias com empresas privadas e órgãos públicos para viabilizar cerimônias, produzir conteúdo editorial, realizar campanhas de mídia e promover destinos internacionalmente. Também recebe uma comissão padrão por cada reserva de hotel feita em seu site ou aplicativo
7. Observações adicionais
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Os dois guias não divulgam quantos votantes ou inspetores atuam em cada país ou região, nem detalham os critérios que tornam esses profissionais figuras de autoridade sobre a hospitalidade local. Alegam que o sigilo é necessário para preservar a imparcialidade e evitar interferências externas.
Fonte.:Folha de S.Paulo


