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28 de novembro de 2025

EUA ordenaram ‘matar todos’ em ataque a barco no Caribe – 28/11/2025 – Mundo

EUA ordenaram ‘matar todos’ em ataque a barco no Caribe – 28/11/2025 – Mundo

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Quanto mais tempo a aeronave de vigilância americana seguia o barco, mais convictos ficavam os analistas de inteligência que acompanhavam a operação dos centros de comando de que as 11 pessoas a bordo transportavam drogas.

O secretário de Defesa, Pete Hegseth, deu uma ordem verbal, segundo duas pessoas com conhecimento direto da operação. “A ordem era matar todos”, disse uma delas.

Um míssil passou zunindo ao largo da costa de Trinidad e Tobago, atingindo a embarcação e incendiando-a da proa à popa. Durante minutos, os comandantes observaram o barco em chamas por meio de uma transmissão ao vivo de um drone. Quando a fumaça se dissipou, levaram um susto: dois sobreviventes estavam agarrados aos destroços fumegantes.

O comandante das Operações Especiais que supervisionava o ataque de 2 de setembro —o primeiro na guerra do governo de Donald Trump contra supostos traficantes de drogas na América Latina— ordenou um segundo ataque para cumprir as instruções de Hegseth, disseram duas pessoas familiarizadas com o assunto. Os dois homens foram bombardeados na água.

A ordem de Hegseth, revelada pelo The Washington Post, adiciona uma nova dimensão à campanha contra suspeitos de tráfico de drogas. Alguns funcionários e especialistas em direito da guerra, tanto atuais quanto antigos, afirmaram que a campanha letal do Pentágono —que já matou mais de 80 pessoas— é ilegal e pode expor os envolvidos mais diretamente a futuros processos judiciais.

Os supostos traficantes não representam uma ameaça iminente de ataque contra os Estados Unidos e não estão, como o governo Trump tentou argumentar, em um “conflito armado” com Washington, afirmam esses funcionários e especialistas. Como não há uma guerra legítima entre os dois lados, matar qualquer um dos homens nos barcos “equivale a assassinato”, segundo Todd Huntley, ex-advogado militar que assessorou as Forças de Operações Especiais por sete anos no auge da campanha antiterrorista dos EUA.

Mesmo que os EUA estivessem em guerra com os traficantes, uma ordem para matar todos os ocupantes do barco caso não pudessem mais lutar “seria, na essência, uma ordem para não oferecer clemência, o que seria um crime de guerra”, diz Huntley, atual diretor do programa de direito de segurança nacional da Faculdade de Direito de Georgetown.

Esta reportagem se baseia em entrevistas e relatos de sete pessoas com conhecimento do ataque de 2 de setembro e da operação como um todo.

O porta-voz do Pentágono, Sean Parnell, recusou-se a responder perguntas sobre a ordem de Hegseth e outros detalhes da operação, incluindo o envolvimento das Forças de Operações Especiais. “Toda essa narrativa é completamente falsa”, disse ele em um comunicado. “As operações em andamento para desmantelar o narcoterrorismo e proteger a pátria de drogas letais têm sido um sucesso retumbante.”

O grupo de elite antiterrorista SEAL Team 6 liderou o ataque, de acordo com quatro pessoas com conhecimento direto do assunto, que falaram sob condição de anonimato devido a questões sensíveis em andamento.

Após o primeiro ataque, o comandante que supervisionava a operação em Fort Bragg, na Carolina do Norte, o almirante Frank M. “Mitch” Bradley, disse aos participantes da teleconferência que os sobreviventes ainda eram alvos legítimos, pois, teoricamente, poderiam contatar outros traficantes para resgatá-los, juntamente com sua carga, segundo duas fontes. Ele ordenou o segundo ataque para cumprir a diretiva de Hegseth de que todos deveriam ser mortos.

Mais tarde, no mesmo dia, Trump divulgou um vídeo editado de 29 segundos, gravado por um drone de vigilância, mostrando o ataque. O vídeo não inclui nenhuma imagem da ofensiva subsequente contra os sobreviventes.

Nas semanas seguintes ao ataque, o governo Trump notificou o Congresso de que os EUA estavam em um “conflito armado não internacional” com “organizações designadas terroristas”, com base em um parecer do Gabinete de Consultoria Jurídica do Departamento de Justiça. O documento afirmava que, como Washington estava em um conflito armado, as pessoas que participassem de ataques militares cumprindo ordens de acordo com as leis da guerra não seriam processadas.

“Esse é um dos problemas do direito dos conflitos armados: o Estado que usa a força é juiz, júri e executor”, diz Huntley.

Desde o primeiro ataque, o Pentágono atingiu pelo menos mais 22 embarcações, incluindo um semissubmersível, no mar do Caribe e no leste do oceano Pacífico, matando outros 71 supostos traficantes de drogas, segundo autoridades e dados internos vistos pelo The Washington Post.

Um ataque clandestino

Na época do ataque de 2 de setembro, Bradley chefiava o Comando Conjunto de Operações Especiais (JSOC, na sigla em inglês), responsável pelas missões mais sensíveis e perigosas das Forças Armadas, frequentemente trabalhando com seus homólogos da CIA. Desde então, Bradley foi promovido a chefe do Comando de Operações Especiais dos EUA, a organização matriz do JSOC, que supervisiona unidades de elite em todas as Forças Armadas.

O SEAL Team 6, formalmente conhecido como Grupo de Desenvolvimento de Guerra Especial Naval e sob o comando do JSOC, realizou a coleta de informações e o direcionamento dos alvos para este ataque e vários outros, segundo duas pessoas. Segundo três pessoas, os protocolos foram alterados após o ataque para dar ênfase ao resgate de suspeitos de contrabando que sobrevivessem aos ataques. Não está claro quem ordenou a mudança no protocolo e quando exatamente ela ocorreu.

Em um ataque ocorrido em 16 de outubro no oceano Atlântico, que matou duas pessoas, outros dois homens foram capturados e repatriados para a Colômbia e o Equador. Em uma série de ataques a quatro embarcações no Pacífico, em 27 de outubro, que mataram 14 homens, um aparente sobrevivente foi deixado para a Guarda Costeira mexicana resgatar. O corpo nunca foi encontrado.

Se o vídeo da explosão que matou os dois sobreviventes em 2 de setembro fosse divulgado, as pessoas ficariam horrorizadas, disse uma pessoa que assistiu à transmissão ao vivo. O site The Intercept foi o primeiro a noticiar que os sobreviventes foram mortos em um ataque subsequente.

Em documentos informativos fornecidos à Casa Branca, o JSOC informou que o “ataque duplo”, ou ataque subsequente, tinha como objetivo afundar a embarcação e eliminar um risco à navegação de outras embarcações, e não matar os sobreviventes, de acordo com outra pessoa que viu o relatório.

Uma explicação semelhante foi dada aos legisladores em duas reuniões a portas fechadas, segundo dois assessores do Congresso. Essa explicação gerou frustração entre alguns membros do Congresso, que afirmam acreditar que o Pentágono foi enganoso em sua descrição dos eventos, disseram os assessores.

“A ideia de que os destroços de um pequeno barco em um vasto oceano representam um perigo para o tráfego marítimo é patentemente absurda, e matar sobreviventes é flagrantemente ilegal”, disse o deputado democrata por Massachusetts Seth Moulton, veterano do Corpo de Fuzileiros Navais e crítico ferrenho de Trump, que recebeu um briefing confidencial de funcionários do Pentágono sobre os ataques no final de outubro, juntamente com outros membros da Comissão de Serviços Armados da Câmara. “Lembrem-se das minhas palavras: pode levar algum tempo, mas os americanos serão processados por isso, seja por crime de guerra ou por homicídio doloso.”

O barco atingido no primeiro ataque foi atacado quatro vezes, duas vezes para matar a tripulação e outras duas para afundá-lo, disseram quatro pessoas familiarizadas com a operação.

Em ataques subsequentes contra supostos traficantes que não deixaram sobreviventes, as forças armadas dos EUA também dispararam vários mísseis para remover embarcações das vias navegáveis, disseram diversas pessoas familiarizadas com o assunto.

Um novo modus operandi letal

A campanha letal do Pentágono representa um afastamento significativo e controverso das missões antidrogas dos EUA no Hemisfério Ocidental nas últimas décadas. Normalmente, navios e pessoal da Guarda Costeira interceptavam e abordavam embarcações suspeitas de tráfico, confiscando os narcóticos e detendo os suspeitos para posterior processo judicial.

Outras agências, como a DEA (Administração de Repressão às Drogas), contavam com informantes e processos judiciais para entender melhor como as drogas fluem da América do Sul para os EUA.

Autoridades afirmaram que os ataques atuais são realizados após o monitoramento da movimentação de barcos e pessoas e visam suspeitos apenas quando há alta probabilidade de que estejam traficando drogas.

Um dia após o primeiro ataque, Hegseth disse à emissora americana Fox News que assistiu à transmissão do vídeo “ao vivo”. “Sabíamos exatamente quem estava naquele barco. Sabíamos exatamente o que estavam fazendo e sabíamos exatamente quem representavam. E era o Tren de Aragua, uma organização classificada de narcoterrorista pelos EUA que tentava envenenar nosso país com drogas ilícitas.”

Mas, em reuniões confidenciais com membros do Congresso, autoridades do Pentágono não forneceram nomes específicos de traficantes ou líderes de organizações criminosas que foram alvos, disseram parlamentares, nem divulgaram publicamente mais informações além dos vídeos de vigilância dos próprios ataques.

Autoridades atuais e antigas das Forças Armadas dos EUA e da DEA expressaram dúvidas de que todas as 11 pessoas a bordo da primeira embarcação fossem cúmplices do tráfico.

A embarcação em questão, uma lancha rápida com quatro motores, é comum na região e normalmente seria tripulada por uma pequena equipe –talvez um mecânico, um ou dois pilotos e outra pessoa focada na segurança, disse um oficial da DEA.

Mais pessoas a bordo significa menos espaço para drogas para vender, explicou o oficial. Ele avaliou que as 11 pessoas poderiam ser uma mistura de traficantes de drogas e migrantes vítimas de tráfico ilegal. O presidente da Colômbia acusou os EUA, em pelo menos um caso, de terem matado um pescador inocente.

Trump e o Pentágono afirmaram que o ataque de 2 de setembro teve como alvo membros da gangue venezuelana Tren de Aragua, mas não apresentaram provas para sustentar essas alegações. Em ataques posteriores, o governo se referiu aos supostos contrabandistas como membros de “organizações designadas terroristas” —um termo genérico e vago.

Há também lacunas nos vídeos dos ataques divulgados pelo governo. Alguns mostram pouco além de uma explosão violenta inicial. Não houve divulgação pública de um vídeo de um ataque subsequente, e o Pentágono não atendeu a um pedido bipartidário de parlamentares para ver as imagens sem edição —o que impossibilita verificar qualquer uma das alegações do governo.

A falta de transparência é um grande obstáculo à responsabilização do governo pelo uso da força, diz Huntley. “Na verdade, a única supervisão”, disse ele, “é pressão pública e política”.



Fonte.:Folha de S.Paulo

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