
- Author, Sofia Bettiza
- Role, BBC Global Health Reporter
- Author, Woody Morris
- Role, BBC World Service
- Reporting from Denmark
Quando a filha de Keira nasceu, em novembro passado, ela teve apenas duas horas com a bebê antes de a criança ser levada para os cuidados do Estado.
“Logo que ela nasceu, comecei a contar os minutos”, lembra Keira, 39. “Eu olhava para o relógio o tempo todo para ver quanto ainda restava.”
No momento em que Zammi foi tirada de seus braços, Keira diz que chorou sem parar, pedindo “desculpa” à filha. “Foi como se uma parte da minha alma tivesse morrido.”
Hoje, Keira é uma das várias mães groenlandesas que vivem na Dinamarca continental e lutam para recuperar os filhos afastados pelos serviços sociais.
Nesses casos, bebês e crianças foram retirados das famílias após testes de competência parental, conhecidos na Dinamarca como FKUs, usados para avaliar se os pais têm condições de cuidar dos filhos.
Em maio deste ano, o governo dinamarquês proibiu o uso desses testes em famílias groenlandesas após décadas de críticas, mas eles continuam sendo aplicados a outros grupos no país.
Essas avaliações, que costumam levar meses, são usadas em casos complexos de assistência social, quando as autoridades acreditam que há risco de negligência ou violência.

Incluem entrevistas com pais e filhos, uma série de tarefas cognitivas, como repetir uma sequência de números de trás para frente, questionários de conhecimento geral e avaliações de personalidade e estado emocional.
Defensores do método afirmam que ele oferece uma avaliação mais objetiva, em comparação com relatos considerados anedóticos ou subjetivos de assistentes sociais e outros especialistas.
Críticos, porém, afirmam que os testes não conseguem prever de maneira confiável se alguém será um bom pai ou uma boa mãe.
Opositores também sustentam há tempos que os exames se baseiam em normas culturais dinamarquesas e lembram que são aplicados em dinamarquês, não em kalaallisut, língua materna da maioria dos groenlandeses. Isso pode gerar mal-entendidos, afirmam.
Os groenlandeses são cidadãos dinamarqueses e podem viver e trabalhar no continente. Milhares deles moram na Dinamarca, atraídos por oportunidades de emprego, educação e acesso à saúde.
Pais groenlandeses que vivem no país têm 5,6 vezes mais chance de ter os filhos retirados de casa do que pais dinamarqueses, segundo o Centro Dinamarquês de Pesquisa Social, instituto financiado pelo governo.
Em maio, o governo dinamarquês anunciou que pretende revisar cerca de 300 casos de crianças groenlandesas removidas à força de suas famílias, incluindo aqueles em que foram aplicados os testes FKU.
Mas, em outubro, a BBC constatou que apenas 10 casos em que os testes foram aplicados haviam sido revisados, e nenhum resultou na devolução das crianças aos pais.
A avaliação de Keira, feita em 2024 durante a gravidez, concluiu que ela não tinha “competências parentais suficientes para cuidar do recém-nascido de forma independente”.
Ela recorda que entre as perguntas estavam: “Quem é a Madre Teresa?” e “Quanto tempo a luz do sol leva para chegar à Terra?”.

Psicólogos que defendem os testes dizem que questões desse tipo avaliam o conhecimento geral dos pais e a compreensão de conceitos do cotidiano.
Keira acrescenta que “me fizeram brincar com uma boneca e me criticaram por não manter contato visual suficiente”.
Ela alega que, ao perguntar por que estava sendo avaliada daquela forma, ouviu da psicóloga: “Para ver se você é civilizada o bastante, se consegue agir como um ser humano”.
A autoridade local responsável pelo caso afirmou que não comenta situações individuais e que decisões de colocar uma criança sob tutela são tomadas quando há preocupação séria com a “saúde, o desenvolvimento e o bem-estar” do menor de idade.
Em 2014, os outros dois filhos de Keira, então com nove anos e oito meses, foram retirados de casa após um teste FKU concluir que suas habilidades parentais não avançavam rápido o suficiente para atender às necessidades das crianças.
A mais velha, Zoe, hoje com 21 anos, voltou para casa aos 18 e atualmente vive em seu próprio apartamento, mas vê a mãe com frequência.
Keira espera se reunir em breve, de forma permanente, com a filha Zammi.
O governo dinamarquês afirmou que a revisão em andamento vai analisar se houve erros na aplicação dos testes FKU em famílias groenlandesas.
Enquanto isso, Keira pode ver Zammi, que está sob os cuidados temporários de uma outra família, uma vez por semana, durante uma hora.
A cada visita, leva flores e, às vezes, comida groenlandesa, como sopa de coração de frango.
“Só para que um pouco da cultura dela esteja com ela”, diz.
‘Senti a pior dor que alguém pode sentir’

Nem todos os pais groenlandeses cujos filhos foram levados para abrigos após testes FKU terão seus casos reavaliados.
O filho de Johanne e Ulrik foi adotado em 2020, e o governo dinamarquês informou que não vai revisar casos em que crianças já foram adotadas.
Johanne, 43, foi testada em 2019, durante a gravidez.
Assim como Zammi, seu bebê deveria ser levado logo após o parto. Mas, como ele nasceu prematuro no dia seguinte ao Natal e os assistentes sociais estavam de folga, ela e o marido, Ulrik, puderam ficar com o recém-nascido por 17 dias.
“Foi o período mais feliz da minha vida como pai”, diz Ulrik, 57.
“Estar com meu filho, segurá-lo, trocar suas fraldas, garantir que Johanne tirasse leite antes de dormir.”
Até que, um dia, dois assistentes sociais e dois policiais chegaram à casa do casal para levar o bebê. Eles dizem que imploraram para que isso não acontecesse. Johanne pediu para amamentá-lo pela última vez.
“Enquanto eu vestia meu filho para entregá-lo aos pais adotivos, que estavam a caminho, senti a pior dor que alguém pode sentir”, afirma Ulrik.
Johanne havia sido submetida ao teste porque dois filhos de um relacionamento anterior, então com cinco e seis anos, foram levados em 2010 após uma avaliação FKU. A análise de 2019 a descreve como “narcisista” e com “retardo mental” — classificações da Organização Mundial da Saúde (OMS) que estavam em uso à época —, mas ela rejeita ambas.

Crédito, Getty Images
Em teoria, não há aprovação ou reprovação nos testes FKU. Eles são apenas um dos fatores considerados pelas autoridades locais ao decidir se uma criança deve ser levada para um abrigo.
Mas o psicólogo Isak Nellemann, que aplicava os testes FKU no passado, diz que, na prática, eles “são muito importantes, quase o mais importante, porque, quando o resultado é ruim, em cerca de 90% [dos casos] os pais perdem seus filhos”.
Nellemann afirma que alguns testes carecem de validade científica e foram desenvolvidos para estudar traços de personalidade, não para prever capacidade parental.
Já Turi Frederiksen, psicóloga sênior cuja equipe aplica os testes atualmente, defende o método e diz que, embora não sejam perfeitos, “são ferramentas psicológicas valiosas e abrangentes”.
Ela também nega a existência de viés contra os groenlandeses.
Em 2019, quando Johanne respondeu a um teste de Rorschach — em que a pessoa diz o que vê em manchas de tinta —, afirmou ter visto uma mulher eviscerando uma foca, cena comum na cultura de caça da Groenlândia.
Johanne afirma que, ao ouvir a resposta, a psicóloga a chamou de “bárbara”.
O conselho local responsável pela avaliação do casal em 2019 não comentou diretamente a acusação.
Afirmou apenas que o relatório “indicou preocupação significativa com as habilidades parentais do casal” e também “com o estilo de vida geral dos pais e seu nível funcional no cotidiano”.

‘Eu nunca vi seus primeiros passos’
Após a retirada do filho de Johanne e Ulrik, o casal pôde vê-lo em visitas semanais e breves até a adoção, em 2020. Desde então, não o viram mais.
“Eu nunca vi os primeiros passos dele, a primeira palavra, o primeiro dente, o primeiro dia de escola”, diz Johanne.
Poucos dias após o nascimento, eles o batizaram, criando um registro oficial com nomes e endereço.
“Precisávamos criar um rastro de papel para que ele pudesse voltar para nós”, afirma Johanne.
A advogada deles, Jeanette Gjørret, pretende levar o caso à Corte Europeia de Direitos Humanos.
A ministra de Assuntos Sociais da Dinamarca, Sophie Hæstorp Andersen, disse à BBC que o governo não reabrirá casos de adoção porque essas crianças agora vivem com uma “família amorosa e cuidadora”. Questionada sobre o andamento da revisão, afirma que “parece lento, mas estamos começando”.
Segundo ela, decisões de retirar e colocar crianças para adoção fazem parte de um “processo muito rigoroso, em que avaliamos a capacidade da família de cuidar da criança não por um ou dois anos, mas por um longo período”.
O argumento é repetido por Tordis Jacobsen, coordenadora de equipes de assistência social em Aalborg Kommune, no norte da Dinamarca. Ela afirma que a retirada de uma criança na Dinamarca nunca é feita de forma leviana.
Segundo ela, sinais de risco costumam ser identificados primeiro por escolas ou hospitais. E, nos casos de adoção definitiva, a decisão passa pela aprovação de um juiz.

Pilunnguaq é uma das poucas mães groenlandesas que conseguiram retomar a guarda de um filho.
Ela e a filha, colocada sob tutela com 1 ano de idade, se reencontraram há alguns meses. A menina agora tem 6 anos.
Aos 39 anos, Pilunnguaq diz que recebeu a notícia inesperada por telefone, em uma ligação do Serviço Social.
“Comecei a chorar e a rir ao mesmo tempo. Não conseguia acreditar. Só pensava: ‘Meu Deus, ela está voltando para casa.'”
Os três filhos de Pilunnguaq foram colocados sob tutela em 2021. Os outros dois tinham 6 e 9 anos.
Ela afirma que concordou com a medida temporária enquanto buscava uma nova casa adequada para as crianças.
Pilunnguaq diz que acreditava que os filhos voltariam em pouco tempo, mas acabou submetida a uma avaliação de capacidade parental.
A conclusão foi que ela apresentava um padrão de “relacionamentos disfuncionais” e era considerada inapta para cuidar das crianças.
‘Eles podem levá-la em uma hora’
Alguns meses depois de a filha de seis anos voltar para casa, Pilunnguaq foi informada pela autoridade local de que os outros dois filhos mais velhos retornarão a ela em dezembro.
A decisão de devolver as crianças foi tomada pela própria autoridade local, e não recomendada pela revisão do governo, que se recusou a comentar o caso.
Passar mais de quatro anos separados dificultou a reconstrução da relação com a filha.
“Se eu for ao banheiro e fechar a porta, ela entra em pânico e diz: ‘Mãe, não consegui te achar'”, diz Pilunnguaq.
Ela também afirma sentir medo de perder a filha novamente. “Eles podem levá-la a qualquer hora. Podem fazer isso de novo.”

Keira agora se prepara para o primeiro aniversário de Zammi, ausente de casa. Ela está construindo um trenó tradicional groenlandês de madeira à mão, com um urso polar desenhado na frente.
No início deste mês, soube que a filha não voltará para casa, pelo menos por enquanto, mas mantém a esperança.
Keira ainda mantém um berço ao lado da cama e outro na sala, com fotos de Zammi emolduradas nas paredes, além de roupas de bebê e fraldas.
“Não vou parar de lutar pelos meus filhos. Se eu não terminar esta luta, será a luta deles no futuro.”
Fonte.:BBC NEWS BRASIL


