(FOLHAPRESS) – Na saída de um bar, Tainara Souza Santos, de 31 anos, foi atropelada e arrastada por um carro por cerca de um quilômetro na zona norte de São Paulo, na manhã de sábado (29). A dez quilômetros de distância, dois dias depois, uma mulher foi atingida por diversos tiros disparados por seu ex-companheiro na pastelaria onde trabalhava.
Tainara teve as duas pernas amputadas e está hospitalizada. A outra mulher segue internada. As duas agressões foram registradas como tentativa de feminicídio.
Em 2025, o número desse tipo de crime na capital paulista chegou a 53 casos, o maior da série histórica -o recorde acontece mesmo com dois meses ainda para terminar o ano. Em 2024, foram 51 casos de feminicídio de janeiro a dezembro, até então o maior número já registrado.
De acordo com um levantamento do Instituto Sou da Paz, a capital paulista foi o cenário de 1 a cada 4 feminicídios consumados no estado. Na comparação dos dez primeiros meses de 2025 com o mesmo período do ano passado, a alta é de 23% na cidade. Em relação a 2023, o crescimento foi de 71%.
Os dados reforçam a tendência histórica da violência contra a mulher: a maioria dos casos ocorre dentro de casa (67%) e as vítimas são assassinadas com armas brancas ou objetos contundentes -instrumentos usados em mais da metade dos crimes no estado.
Coordenadora das Delegacias de Defesa da Mulher no estado, Adriana Liporoni afirma que os casos de feminicídio geralmente são o desfecho de um ciclo prolongado de violência. Segundo ela, o aumento das ocorrências reflete tanto a intensificação dos conflitos nas relações quanto o aprimoramento na identificação e registro jurídico dos crimes.
Ela afirma que a Lei do Feminicídio, sancionada em 2015, ajudou a melhorar esse reconhecimento, mas que parte do crescimento é resultado também de aumento da violência extrema na sociedade. Para ela, a brutalidade dos atos reflete a dinâmica de controle e posse, com alguns agressores reagindo com violência desproporcional quando a mulher tenta romper a relação.
Antes da mudança na legislação, esses crimes em geral eram registrados como homicídio. Com a alteração, o assassinato em razão de gênero passou a ser contabilizado separadamente.
Liporoni ressalta que, embora a legislação esteja em constante evolução, uma lei sozinha não transforma a realidade. “O grande desafio está na prevenção e na capacidade de identificar os primeiros sinais do ciclo violento”, diz. Quando a violência é percebida cedo e a rede de proteção atua rapidamente, aumenta a chance de interromper o ciclo antes que ele evolua para situações extremas, explica a delegada.
Malu Pinheiro, do Instituto Sou da Paz, diz que os crimes de feminicídio, muitas vezes cometidos por familiares ou companheiros e fora do ambiente público, exigem intervenções específicas, diferentes das aplicadas pela polícia em outros crimes contra a vida. Ela também aponta que a integração e ampliação dos serviços de acolhimento às mulheres em situação de violência é essencial para ajudar as vítimas a romperem o ciclo de abuso e a não permanecerem em risco.
A brutalidade nas ações de homens que matam mulheres deixa incrédulo até quem possui experiência em se deparar com os mortos. À Folha de S.Paulo a fotógrafa técnico-pericial Telma Rocha, que tem mais de 30 anos de atuação nas ruas de São Paulo e atualmente trabalha no Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa da Polícia Civil, detalhou o que vê ao chegar em uma cena de crime.
“[Mulheres] Queimadas, amarradas, espancadas, mutiladas. Mas o que mais me chama a atenção e, muitas vezes me quebra, são os ferimentos de defesa. Cortes nas mãos, nos braços e unhas quebradas. Isso me destrói, pois chega a passar a cena na minha imaginação. É muito cruel”.
Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que o maior problema hoje no combate à violência contra a mulher é de falta de medidas de prevenção, não de legislação. “A pena para feminicídio é de até 40 anos de reclusão, a maior prevista no Código Penal”, diz a desembargadora Ivana David, do Tribunal de Justiça de São Paulo. “Precisamos de mais investimento em políticas públicas eficazes, que realmente protejam as mulheres”, afirma ela.
Recentemente, episódios de grande repercussão nacional chamaram atenção pela crueldade dos crimes cometidos contra mulheres, geralmente por homens com os quais as vítimas tinham alguma relação. “As mulheres estão tendo coragem de denunciar, procurar atendimento e ajuda. O agressor dá sinais. O feminicídio é o limite final”, diz a desembargadora.
A delegada Liporoni cita alguns exemplos de ações que podem ajudar a combater a violência contra a mulher: medidas de prevenção em escolas, o fortalecimento da rede de proteção, o atendimento especializado e humanizado, o cumprimento de medidas protetivas e a responsabilização dos agressores. Além disso, programas de reeducação masculina são fundamentais para quebrar padrões, segundo ela.
Ivana afirma que “os homens estão mais violentos e agressivos”, e que os crimes têm sido cada vez mais marcados por requintes de crueldade e ódio. Ela considera que o maior desafio é mudar uma cultura patriarcal, misógina e desigual de gênero.
Beatriz Accioly, antropóloga e líder de Políticas Públicas no Instituto Natura, afirma que os principais fatores de risco para mulheres incluem a desigualdade de gênero, normas sociais permissivas, falta de acesso a oportunidades e redes de proteção ineficazes.
Ela critica a falta de priorização orçamentária tanto pública quanto privada para criar soluções eficazes, como delegacias 24h e campanhas de mudança de comportamento.
Ela alerta também para o aumento de discursos de ódio online contra mulheres, que alimentam a violência física e tornam a internet um canal de disseminação de misoginia. Embora o Brasil tenha regras como a Lei Maria da Penha, ela enfatiza que nem sempre elas se traduzem em proteção real. Para que isso aconteça, afirma, são necessários políticas públicas concretas, recursos e coordenação entre os diferentes níveis de governo.
A Pesquisa Nacional de Violência Contra a Mulher apontou que 70% dos casos de violência têm testemunhas, mas 40% dessas pessoas não tomam nenhuma atitude. Beatriz defende que é preciso ir além da simples informação: “Conscientização não é apenas saber que o problema existe; é saber o que fazer. É considerar isso inaceitável, intervir, apoiar.”

A jovem de 30 anos, descrita por amigos e familiares como alegre, trabalhadora e dedicada aos dois filhos, foi atropelada e arrastada por um ex-ficante na Marginal Tietê. Ela segue internada, enquanto o agressor foi localizado e preso pela polícia.
Notícias ao Minuto | 07:42 – 01/12/2025
Fonte. .Noticias ao Minuto


