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4 de dezembro de 2025

‘Foi Apenas um Acidente’ move espectadores pela dúvida – 04/12/2025 – Ilustrada

‘Foi Apenas um Acidente’ move espectadores pela dúvida – 04/12/2025 – Ilustrada

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Depois de amargar duas prisões, Jafar Panahi consegue circular livremente e mesmo viajar até o Brasil —onde apresentou seu “Foi Apenas um Acidente” na Mostra Internacional de São Paulo deste ano. Apresentou com todas as honras, pois já havia ganho a Palma de Ouro em Cannes, além de hoje ser considerado um forte candidato ao Oscar de filme em língua estrangeira.

Tudo isso suscita uma questão: será essa premiação ilustre um mérito do filme ou da biografia do seu autor? Bem, essa é uma dúvida análoga à de Vahid —papel de Vahid Mobasseri—, o personagem central de seu filme. Ele sequestra o homem que julga ser um temível torturador, aquele que arruinou a sua vida no tempo em que esteve na prisão. Sente tanto ódio do homem que pretende enterrá-lo vivo.

No momento final, no entanto, é invadido pela mesma dúvida em que está imerso o espectador: será esse homem realmente o criminoso hediondo que ele descreve? O homem nega, claro. Mas nós o vimos pouco antes, com a mulher e a filha, dirigindo seu carro pacificamente. Por que julgar que esse bom homem seria o carrasco a quem procura?

E Vahid é invadido pela dúvida: seria este o homem errado? Parte em busca de outras antigas vítimas em busca de uma certeza. Desde então estamos no registro do suspense clássico —os sinais da culpabilidade do homem são evidentes, mas os da inocência também.

Ao fim de um tempo podemos imaginar que o filme vá se tornar uma espécie de burlesco, já que Vahid consegue colocar em seu furgão um casal de noivos, uma fotógrafa, o possível torturador e outra vítima, o furioso Hamid —que deseja vingança pelos sofrimentos que passou— quer seja o homem o torturador a quem procuram ou apenas um homem que poderia ser ele.

A incerteza dos protagonistas passa pelo fato de ninguém nunca ter visto o homem, que os vendava todo o tempo. Com sua impulsividade, Hamid periga de até mesmo atrair a atenção da polícia. Os demais tentam contê-lo. Esse interlúdio cômico não nos desvia do suspense, felizmente.

Quanto mais o filme avança, mais a dúvida persiste. A ponto de, em dado momento, dois personagens se verem ao lado de uma árvore seca, num lugar desértico, citando “Esperando Godot“.

Com efeito, quem senão Godot poderia trazer a certeza absoluta, sem uma dúvida razoável, que justifique a morte do suposto torturador? E mesmo que essa certeza apareça, outra dúvida se instaura —a vingança não tornaria esses opositores do regime iguais a seus carrascos? Será isso que eles querem?

Depois de um início em ritmo de suspense clássico, o filme aos poucos ganha uma dinâmica política. O torturador —seja ou não o que eles enfiam drogado no furgão— representa a fé xiita no poder e suas decorrências: o fanatismo, a intolerância, a perseguição a quem não partilhe de suas ideias. Enfim, estamos no pantanal do absolutismo religioso.

Com exceção desse fato, “Foi Apenas um Acidente” se afirmaria apenas como um suspense tradicional bem levado. Porém as circunstâncias contam. Isso não é, aliás, nenhuma novidade em Cannes. Enfim, será que a Palma de Ouro concedida a “Foi Apenas um Acidente” premia mais as virtudes do filme ou a vida e obra de Jafar Panahi, sua intransigência e coragem frente à ditadura e o fato de filmar ao menos semiclandestinamente, já que foi condenado ao silêncio?

É uma dúvida tão razoável, no caso, como a que consome os personagens do filme. A propósito: o final do filme, pela secura, pelo uso do som, pelo que sugere de terrível —ou não— é notável. Contorna a questão óbvia que ocupa a mente dos personagens —e espectadores— de forma tão aguda quanto elegante e relança a dúvida com eficiência.



Fonte.:Folha de S.Paulo

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