Embora o Brasil seja um país violento, nunca passei tanto medo quanto dentro da minha própria casa. Nos tempos em que sofri violência doméstica, me escondia das brigas no quarto. Quando o quarto era invadido, me trancava por horas no banheiro. Até que, finalmente, consegui que tirassem o sujeito de vez da minha casa e passei a habitar novamente todos os cômodos.
Com a explosão de depoimentos nos últimos tempos, descubro que essa experiência não é só minha. É, literalmente, de milhões de mulheres. No levantamento de 2025 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 37,5% das entrevistadas disseram ter sofrido algum tipo de violência no último ano. Em quase 70% dos casos, o autor da violência foi um parceiro ou ex-parceiro íntimo.
E olha que muitas violências não são denunciadas, ou por não serem entendidas como tal ou pela ilusão de que o sujeito vá mudar (ele não vai) ou por medo.
Em seu livro “Agressão”, Ana Paula Araújo explica que há diversos tipos de violência, inclusive sorrateiras. “Há mulheres que sofrem ameaças constantes, as que são impedidas de gastar o próprio dinheiro como querem ou usar as roupas que desejam, mulheres que são isoladas da família e dos amigos ou são ofendidas e diminuídas pelo parceiro.”
Lendo outro livro excelente, o “Matou Uma, Matou Todas”, de Klester Cavalcanti, entendi que, muitas vezes, o que começa com um xingamento ou cerceamento pode acabar em morte.
No ano passado, 93% dos feminicídios foram cometidos por parceiros, ex-parceiros ou familiares das vítimas. Ao contrário do que muitos pensam, o assassino não é um psicopata, um doido vagando à margem da sociedade. O feminicídio costuma ser apenas o último capítulo de uma história de violência doméstica —há mulheres que dividem a cama hoje com quem as matará amanhã.
E o perigo não fica só no quarto de casal. A casa também é o lugar mais perigoso que existe para as meninas. Mais da metade das vítimas de estupro no Brasil tem até 14 anos. Em 63% dos casos, o abusador é um familiar da vítima. O estupro acontece no quartinho dos fundos. Na sala. No banheiro. Em lugares onde essas meninas deveriam se sentir seguras.
A casa, aquele lugar para onde voltamos ao fim do dia, cansadas, desejando descanso, bem-estar e proteção, é tudo menos um refúgio para milhões de mulheres. Como resgatar esse espaço?
Antes de tudo, impondo tolerância zero para qualquer violência. E denunciando. Quem está testemunhando agressões, também deve denunciar. 7 em cada 10 casos de violência doméstica têm testemunhas mas, em 40% dos casos, a testemunha não prestou ajuda. Se tivesse prestado, poderia ter mudado uma história. Às vezes, salvado uma vida.
É preciso reformular aquela frase: em briga de marido e mulher, todo mundo tem que meter a colher. Quando há desconfiança de abusos de menores, todo mundo tem que meter a colher. E também devemos meter a colher na sociedade, para ver se erradicamos de vez o causador de tanta violência: o machismo.
Quem sabe assim outras mulheres não precisem ficar como um dia fiquei: escondida e assustada dentro do meu próprio banheiro.
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Fonte.:Folha de S.Paulo


