Nesta semana o cantor Zezé Di Camargo foi cancelado nas redes sociais. Zezé virou persona non grata após publicar um vídeo na madrugada de 14 para 15 de dezembro com críticas à família Abravanel por causa das presenças de Lula e Alexandre de Moraes no lançamento do canal SBT News.
Em tom impaciente, Zezé pediu que o seu especial de fim de ano na emissora não fosse mais transmitido. Completou dizendo que a emissora estaria “se prostituindo” dos ideais de Silvio Santos. Como apurou a colunista Monica Bergamo, desta Folha, as filhas de Silvio consideraram a fala machista.
O cantor foi contactado pelo apresentador Ratinho e por Patrícia Abravanel. Publicamente, Ratinho foi duro no meio da semana: “Tornar o momento do lançamento de um canal de notícias, o SBT News, em fanatismo político, é uma atitude que beira a ignorância”, disse o apresentador.
Zezé então publicou uma nota de retratação na terça (16), afirmando ter usado “a expressão ‘prostituindo’ em sentido figurado, sem qualquer intenção ofensiva ou de cunho de gênero”.
Nas redes sociais e nas mídias tradicionais choveram explicações para a atitude do cantor. O comentarista político João Cezar de Castro Rocha disse que a atitude de Zezé era mais mercadológica que ideológica. O ex-jogador Walter Casagrande afirmou que a fala machista e misógina mostrava a verdadeira face de Zezé Di Camargo.
Para a colunista Luciana Bugni, a explicação era mais íntima: “Passa pela dificuldade de lidar com o envelhecimento, pela luta contínua para manter sua voz e combater questões de saúde vocal, pelas polêmicas familiares pós-divórcio e pela polarização política brasileira”.
Muitas especulações. Algumas com algum fundamento. Mas a verdade é que Zezé é um grande desconhecido.
Há quase 35 anos ele está presente na vida dos brasileiros, desde que estourou com “É o amor”, em 1991. Mas nenhum jornalista, músico, historiador, escritor ou comunicólogo sérios se debruçou sobre sua trajetória e escreveram uma biografia de Zezé Di Camargo.
Goste-se ou não do goiano, sua vida é muito representativa das transformações pelas quais o Brasil passou nas últimas décadas. Nascido na miséria, enriqueceu através de um gênero musical considerado subalterno. Zezé foi a vanguarda do sertanejo e viu gerações seguintes passarem diante dele. Apoiou Collor, FHC, Lula e Bolsonaro. Cantou músicas sobre reforma agrária (“Meu país”), sobre meninos de rua (“Bandido com razão”) e defendeu o agronegócio. Foi influenciado por Beatles e Tião Carreiro. Divorciou-se de sua primeira mulher e tornou-se pai sessentão.
O que levou o cantor a tantas piruetas revisionistas na política e na vida pessoal? As entrevistas com ele raramente vão além da divinização do artista ou das frivolidades banais de revista de fofoca. Uma biografia de Zezé Di Camargo, feita por um autor sério, ajudaria a entender a mudança do padrão auditivo do Brasil profundo. Como os gostos estéticos mudaram? Como o que era considerado brega e tosco tornou-se mainstream em poucas décadas?
Se fosse em outro país, haveria dezenas de publicações sobre Zezé. Pense, por exemplo, na cantora Taylor Swift. Num mercado editorial pujante como o americano, a cantora tem diversas biografias.
Entre os mais de dez livros existentes sobre a cantora, há desde o chapa branca “The Official Taylor Swift” até biografias não autorizadas, como “The little guide to Taylor Swift: unofficial and unauthorized” e “Taylor Swift, de era em era: a biografia não autorizada”, esta última bestseller no jornal The Sunday Times.
Sobre Zezé, o que temos? Há o livro “Dois Corações e Uma História”, lançado pela revista Contigo! (pois é!) em 2010. Trata-se de um álbum de fotos, sem nenhuma análise séria da trajetória de Zezé. Há também o chapa-branquíssimo “Simplesmente Helena”, escrito pela jornalista Carolina Kotscho, que narra a vida da família Camargo antes e depois do sucesso da dupla, focando a força e a simplicidade de Dona Helena, mãe de Zezé.
O livro de Kotscho tentou pegar carona no sucesso do filme “Dois filhos de Francisco” (2005), dirigido pelo sensível Breno Silveira. Este filme revitalizou a carreira do cantor num momento em que ele começava a sofrer com problemas vocais. Em 2021 a Netflix lançou a série “É o amor”, um reality sobre a família Camargo. Era a versão autorizada e familiar de Zezé.
Como se vê, existe uma filmografia sobre o cantor. Mas nunca houve quem se atrevesse a escrever uma biografia séria, densa e de qualidade sobre Zezé. Daí que, toda vez que ele se envolve em polêmicas, e não são poucas, surgem várias explicações, quase todas baseadas mais em achismos do que análises aprofundadas.
O cantor mais popular da história do Brasil, Roberto Carlos, só ganhou uma biografia de peso depois de mais de 40 anos de carreira, escrita pelo pesquisador Paulo César de Araújo em 2007. Pelo visto Zezé padecerá do mesmo desprezo de nossa intelectualidade. Mas isso é menos um problema dele e mais nosso. Somos nós que estamos perdendo.
Zezé precisa ser biografado urgentemente. Há um imenso Brasil que, gostemos ou não, pensa parecido com ele, seja quando votou em Lula, seja quando votou em Bolsonaro. Em suas ambiguidades e contradições, entre suas limitações e genialidade, Zezé é a cara do Brasil.
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Fonte.:Folha de S.Paulo


