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21 de dezembro de 2025

Meu tanque de cortisol estava seco – 21/12/2025 – Giovana Madalosso

Meu tanque de cortisol estava seco – 21/12/2025 – Giovana Madalosso

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Consegui sobreviver a 2025 graças à cafeína. Assolada pela queda estrogênica da menopausa e fazendo turnê de lançamento do meu livro, foram as xícaras que me tiraram da cama e me levaram em frente.

Meus dedos já acordavam com aquele formato de mão de Playmobil: a garra em C, pronta para encaixar a primeira dose. Seguia assim pelo resto do dia, só mudando os recipientes.

Devia ter desconfiado que desenvolvia um problema de adição. A barista do café do aeroporto me cumprimentava pelo nome. O barista do meu bairro cumprimentava minha cachorra pelo nome. Quando não achava café, ia de mate ou de Coca.

Só fui sentir algo estranho lá por novembro. Não importava quantas xícaras eu bebesse, seguia cansada. E não era um cansaço comum. Era um esgotamento. Se bobear, até minhas unhas tinham preguiça de crescer —para que vir ao mundo para ficar se atritando com o sapato?

Além disso, todos os dias, pelo meio da tarde, meu grau de irritabilidade estava tão alto que eu era capaz de agredir uma flor só por ela não ter desabrochado na minha passagem. Nem conto o que disse a alguns operadores de telemarketing: esse parágrafo seria censurado.

E a minha libido? Aliás, do que se trata isso?, devo ter me perguntado por aqueles dias. Assistia às cenas de sexo dos filmes como se aquilo fosse uma prática distante, um ritual exótico, de motivação quase incompreensível. Meu grau de excitação próximo ao de uma panqueca.

Foi num exame de sangue, seguido de uma consulta médica, que entendi o meu estado. Minha taxa de cortisol estava abaixo da metade do número de referência. Se um leão aparecesse na minha selva, eu não teria ânimo para correr, tentaria demovê-lo de me devorar cantando uma cantiga. E das curtas.

Voltando ao consultório: meu cortisol estava “gasto” porque eu tinha pisado demais no acelerador. Dormido pouco, descansado pouco e feito muito. Por muitos meses.

O café tinha ajudado a mascarar a realidade. Claro que a culpa não é do grão. Até água em excesso faz mal. O problema era a minha ânsia. Sou filha do capitalismo, neta de imigrantes pobres e tenho uma ambição literária que me faz crescer mas, às vezes, me escraviza.

Perguntei à médica o que deveria fazer para ajeitar meu cortisol. Pensei que ela iria me recomendar tratamentos estrambólicos e coquetéis de vitaminas mas tudo o que disse foi: descansar. E depois de um breve silêncio: dormir.

Fiquei constrangida. Como havia esquecido de cuidar deste pequeno detalhe, que ocupa um terço da minha vida? De que adiantavam tantas leituras, tantas opiniões, tantos papos-cabeça em feiras literárias se eu não entendia nem o beabá da existência, aquilo que até bebês vinham fazendo melhor do que eu?

A médica me tranquilizou, dizendo que eu não era a única. São milhões, os soldadinhos extenuados do sistema, que não sabem nem o que fazer para provocar uma diuturna pestana.

Entendi que descansar não é se internar num spa de luxo por uns dias e depois se esfalfar para pagar a conta. Nem usar um relógio para otimizar a qualidade do sono. Nem ler um livro sobre descanso. Nem ter o sono como meta, para seguir produzindo.

É fechar as pálpebras, apenas. E, obviamente, sair correndo se um leão interromper o cochilo.


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Fonte.:Folha de S.Paulo

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