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29 de dezembro de 2025

Autocensura em regimes de exceção impacta eleições, diz jurista

Autocensura em regimes de exceção impacta eleições, diz jurista

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Com as eleições de 2026 no horizonte, o debate sobre a influência do Judiciário no processo eleitoral deverá voltar ao foco. As medidas adotadas nos últimos pleitos, especialmente em 2022, continuam a produzir efeitos sobre o ambiente público e levantam dúvidas sobre o grau de liberdade política nas próximas disputas.

Para Adriano Soares da Costa, ex-juiz de Direito e especialista em Direito Eleitoral, o impacto das decisões de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é preocupante para as pretensões da direita.

Em entrevista à Gazeta do Povo, ele recorda que a atuação do Judiciário naquele ano representou uma ruptura com o modelo tradicional de fiscalização da propaganda eleitoral no Brasil.

Para ele, a combinação de censura direta e autocensura deve continuar interferindo no debate político em 2026, com impacto inevitável na corrida eleitoral. Os riscos aumentam por causa da permanência de inquéritos no STF que permitem a adoção de medidas cautelares fora do âmbito eleitoral.

“Os regimes com procedimentos de exceção de viés mais autoritários geram autocensura. Por exemplo, esses inquéritos das fake news e das milícias digitais não têm a mínima sustentação constitucional. E eles são instrumentos poderosos de quebra do princípio dos freios e contrapesos”, diz.

Na entrevista a seguir, o jurista também analisa como a Corregedoria do TSE e a Presidência da Corte passaram a concentrar decisões que, historicamente, não lhe cabiam. Confira:

Suspensão de contas é censura prévia

O nosso tribunal eleitoral só atua nos casos de propaganda eleitoral em período eleitoral. É isso que o ordenamento jurídico prevê. E essa atuação é normalmente provocada ou pelo Ministério Público, ou pelo candidato que concorre contra aquele contra quem se entraria com a representação, ou por terceiros que se sintam atacados no processo eleitoral por um dos candidatos ou partido político.

Então, são nesses casos em que há uma atuação da Justiça Eleitoral retirando aquele conteúdo ofensivo e dando direito de resposta. Não há previsão de suspensão integral de contas de candidatos.

Se você suspende a conta do candidato, você está fazendo o cerceamento da liberdade de expressão e impedindo que ele possa fazer propaganda eleitoral. É um caso típico de censura prévia, vedada pela Constituição de um lado e de outro lado pela própria legislação eleitoral. Você suprime do candidato indefinidamente a possibilidade de exercício da sua candidatura.

O papel de Luis Felipe Salomão na censura das eleições de 2022

Na eleição de 2022, houve um fato que não tem sido tratado pela imprensa nem pelos meios jurídicos, mas é um fato relevantíssimo, envolvendo a Corregedoria Geral Eleitoral do Tribunal Superior Eleitoral, na época conduzida pelo ministro Luis Felipe Salomão – que passou a exercer uma função que nunca lhe coube. Fora do período eleitoral, sem provocação de quem quer que seja – e ainda que tivesse, não lhe cabia –, ele começa a fazer o monitoramento, o controle e a suspensão de contas de influenciadores digitais de direita. A Bárbara do canal Te Atualizei, o deputado Gustavo Gayer e outras personalidades passaram a sofrer sanções por parte da Corregedoria Eleitoral de desmonetização, de suspensão de determinadas postagens e também de suspensão de contas com milhões de seguidores.

Isso foi uma atuação que não tem qualquer respaldo ou previsão legal. Inclusive, isso foi feito fora do período eleitoral. Então, não se tratava nem sequer de poder de polícia eleitoral do Tribunal Superior Eleitoral. Foi uma atuação que gerou censura prévia e terminou indiretamente, ou até diretamente, trazendo influência no campo político eleitoral.

Quando você cala vozes, quando você silencia – e, sobretudo, isso não é tomado como uma medida para todos os matizes políticos –, isso tem, claro, uma interferência direta ou indireta no processo eleitoral que virá.

Não existe hipótese constitucional legal que autorizasse isso, nem resoluções. Foi uma atuação absolutamente fora de qualquer esquadro legal.

Nunca o sistema jurídico teve qualquer previsão e nunca antes houve qualquer atuação, por mínima que fosse, nesse sentido, da Justiça Eleitoral através da Corregedoria.

O que ocorreu em 2022: explicação técnica

O que se identificou em 2022 foi uma concentração de decisões sobretudo na Presidência do TSE. O controle da propaganda eleitoral não é feito, inicialmente, pelo tribunal como um todo. Ela é uma competência exclusiva do chamado “juiz da propaganda”, que, nos tribunais, é um papel exercido por três figuras chamadas juízes auxiliares, ou ministros auxiliares, que não fazem parte do corpo dos sete titulares. Normalmente, é um ministro do STJ e dois representantes da advocacia. Era assim.

Toda eleição, o juiz auxiliar da propaganda recebe representações, por exemplo, contra propaganda irregular ou alguma postagem lesiva, ou o que for. Essa representação – feita por candidato, ministério público, partido político – é distribuída entre esses juízes auxiliares da propaganda, que poderão ou não conceder liminar, suspendendo aquela propaganda específica ou aquela postagem irregular. Apenas em caso de reiteração você poderia suspender, por um pequeno período, além de aplicar multa em dobro, a conta – como você poderia suspender, por exemplo, a propaganda eleitoral no horário eleitoral gratuito. Por reiteração e sempre por um período curto. Isso funciona menos como uma censura prévia e mais com uma sanção após a reiteração daquela conduta, da repetição daquela postagem específica proibida. Isso é bem delimitado.

O juiz auxiliar quando emite liminar, negando ou concedendo, e abre prazo para a defesa, que normalmente é de 48 horas, em seguida pauta o processo no tribunal. Quando ele leva para o tribunal, ele entra em substituição a um dos sete. Se é um advogado, ele entra no lugar de um dos ministros advogados, que vêm da advocacia. Se a origem dele é do STJ, ele entra no lugar do ministro do STJ. Só para o julgamento. Isso faz com que haja uma oxigenação. É um sistema interessante.

Nada obstante, o que foi que aconteceu em 2022? Outra coisa para a qual não existia previsão legal, absolutamente fora de qualquer história de eleição: o presidente do TSE cria uma comissão de juízes da propaganda e se insere nela. E aí passam os processos a serem distribuídos para ele. E, curiosamente, os processos principais, de maior repercussão, todos foram pra ele.

E ele passa então a suspender contas alegando o exercício do poder de polícia eleitoral, que não tem esses condutos. Trata-se, portanto, de uma inovação no meio do processo eleitoral, mudando a composição de decisões a esse respeito. E isso fez com que houvesse, então, um recrudescimento de decisões de suspensão de perfis, e não apenas de propaganda.

Inclusive o TSE baixa uma resolução dando poderes neste campo que nunca a Justiça Eleitoral teve, e não há previsão legal desse poder. Não havia, em 2022, previsão legal. O Supremo mantém essa resolução, quando questionado, e essa resolução foi utilizada pela primeira vez na eleição de 2022, com um poder extremo concentrado na mão do presidente do TSE.

É aí que se instaura com mais ênfase essa questão da censura prévia. A mais paradigmática dela ocorre na vedação, com censura prévia, não apenas às redes sociais, mas à empresa Brasil Paralelo, que ficou impedida, em censura prévia, de publicar um documentário que tinha por objeto a questão da facada no Jair Messias Bolsonaro. Houve a proibição, censura prévia. E esse vídeo só foi suspenso pela notícia, ninguém nem sabia o conteúdo.

Foi aquele famoso voto em que a ministra Cármen Lúcia suspendeu a Constituição até o dia 30 de outubro.

Esse é o contexto. Tudo começa, na verdade, inicialmente com a Corregedoria Eleitoral, e depois se instrumentaliza nos famosos inquéritos da milícia digital e que tais. Houve uma atuação conjunta nesses inquéritos do Supremo, concentrados no seu relator, que por coincidência era o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, com a Corregedoria Eleitoral. Foi uma concentração de poder muito grande para disciplinar e delimitar o debate público.

Censura horizontal e vertical nas eleições

Houve a censura em dois tipos de cortes, um corte vertical e um horizontal.

No corte horizontal, delimitam quais são aqueles influenciadores e discursos que vão sofrer censura e algum tipo de restrição. Pegam horizontalmente o número de pessoas de determinado espectro.

A censura vertical foi a delimitação de que temas poderiam ser tratados e quais não poderiam ser tratados. Por exemplo, você não pode chamar um candidato que foi condenado de ex-condenado. Você não pode tratar de determinados assuntos, como a eventual vinculação de um partido a determinada organização criminosa, ainda que não seja uma vinculação criminal, mas que seja uma vinculação política, discursiva. Você não pode tratar de um determinado candidato ser amigo de ditadores da região. Então, você faz uma delimitação vertical. Você faz um recorte profundo na realidade e traça fronteiras onde determinados temas não podem ser abordados ou tratados.

Isso também interfere e influencia o discurso. Houve, portanto, a delimitação de pessoas e a delimitação temática. Essa é uma realidade que mudou o cenário político e ainda interfere.

A possível influência dos inquéritos do STF nas eleições de 2026

Temos uma situação no Brasil absolutamente esdrúxula. Você tem a Justiça Eleitoral, a quem cumpre fazer com que as leis eleitorais no campo da propaganda e do financiamento sejam efetivamente aplicadas e observadas e cujo princípio é o da liberdade da propaganda eleitoral e da liberdade de expressão, salvo as delimitações legais. Mas o princípio é que as propagandas sejam livres. Há os requisitos e algumas proibições, enfim, esse é o normal dos mundos. Todavia, a Justiça Eleitoral que tem essa competência, tem um concorrente hoje, que são os inquéritos das milícias digitais etc.

Nós não sabemos, ninguém sabe o que vai acontecer. Porque mesmo depois de julgado o tal “golpe de Estado”, com pessoas já cumprindo pena, esses inquéritos de milícia digital, de atos antidemocráticos não foram encerrados e ficarão em aberto, dando ao Supremo Tribunal Federal um poder ilimitado de suspensão de perfis e medidas no âmbito criminal, que poderão concorrer com a Justiça Eleitoral.

Temos aí um campo do imponderável. Não há quem possa dizer como vai ser a próxima eleição do ano que vem do ponto de vista ainda da existência desses inquéritos. Como é que o relator desses inquéritos, o ministro Alexandre Moraes, irá se portar no processo eleitoral? Ele vai invadir a competência do TSE alegando que algum ato foi antidemocrático ou é prática de milícia digital? Ninguém sabe.

Autocensura em regimes de exceção como o brasileiro

Há uma autocensura, por uma razão: os regimes com procedimentos de exceção de viés mais autoritários geram autocensura. Por exemplo, esses inquéritos das fake news e das milícias digitais não têm a mínima sustentação constitucional. E eles são instrumentos poderosos de quebra do princípio dos freios e contrapesos.

Há parlamentares que, por decisão monocrática, dentro de um inquérito, têm suas contas suspensas. O juiz penal tem maiores restrições na sua atuação, porque ele lida com a liberdade, que é um bem essencial. Nesses inquéritos, foram aplicadas medidas cautelares, penais, usando o poder geral de cautela do juiz civil.

Quero lembrar que, através de mensagens publicadas em jornais, empresários sofreram constrangimento de busca e apreensão, bloqueio de contas digitais, de contas bancárias, investigações. Então, de um lado, você tem uma circunstância constitucional de um direito legal, e de outro, tem um direito que não é direito. Tem o exercício de um poder paralelo ao Estado Democrático de Direito.

E só tem um verniz jurídico. Há afronta clara às cláusulas pétreas da Constituição. E, hoje, se você for olhar a imprensa, parte dela, que apoiava e tinha formadores de opinião que endossavam esse regime de exceção, hoje, vencidos os adversários reais ou imaginários, eles agora estão pedindo o quê? O fim da exceção. “Esse sistema de exceção não pode continuar, é preciso que o Supremo volte à caixinha…” Ou seja, isso é um reconhecimento tácito de que eles tinham consciência de que havia uma exceção, um regime de exceção em vigor.



Fonte. Gazeta do Povo

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